Rachel e seus irmãos…

“Um buraco se abriu com o resultado positivo do diagnóstico da Covid-19, a pneumonia e a internação. Tudo num raio de poucas horas no corredor do hospital. Neste intervalo, refiz o percurso dos 10 meses de confinamento social, nos quais vi a vida passar pela janela. Tentei identificar a situação que teria, eventualmente, me exposto ao vírus. Tendo seguido rigorosamente os protocolos sanitários fui, muitas vezes taxada de exagerada e chata. A única explicação plausível para o contágio era meu retorno ao trabalho presencial.

Um coquetel intenso de emoções se apossou de mim ao longo dos dias em que vi a vida passar pelas janelas do hospital. Muito medo de não ver mais os meus filhos, muitas incertezas, muita culpa – sim, eu me culpava o tempo todo. Felizmente, fui muito bem acompanhada e cuidada pela equipe hospitalar. Mas os dias pareceram terrivelmente infinitos. Nada era capaz de me prender a atenção, os livros levados ao hospital pelo meu companheiro não avançavam para além da primeira página. A TV era uma trilha sonora de fundo para passar o tempo que não passava.

No dia 14 de novembro, recebi a notícia alvissareira de que a infecção havia regredido. Teria alta no domingo das eleições municipais. Naquele dia ensolarado de exercício da democracia, eu deixava o hospital. Assim que o táxi virou a esquina, uma alegria incontinente tomou conta de mim. Chorei. Estava viva. Nunca tinha sentido tanta felicidade ao ver as ruas, os carros e as pessoas circularem. Pela primeira vez, em mais de 30 anos, eu não votaria. Ainda assim, alegrava-me ao renascer em um dia tão emblemático para a minha cidade.

No dia 16 de novembro, meu irmão faleceu em consequência de um AVC provocado pela Covid. A 560 km de distância do local de seu sepultamento, me despedi em pensamento lembrando-me do nosso último encontro 15 dias antes do isolamento social.

O luto e as sequelas da infeção foram muito difíceis. Muito cansaço físico e emocional.

No dia 20 de março de 2021, meu outro irmão foi internado com Covid-19. Portador de várias comorbidades, morador de uma cidadezinha do oeste paulista, no pico 

do quadro agravado de internações, não havia uma UTI disponível. No dia 23 de março, não resistiu. Faltou UTI, faltou ar, faltou dignidade, faltou respeito.

Desempregados, moradores de rua, trabalhadores da linha de frente, crianças, mulheres vítimas de violências silenciosas, todos têm sido expostos ao descaso e negligência de um governo indiferente às mais de 350 mil vítimas da Covid. Contudo, que nesta luta ainda incandescente, não nos falte solidariedade”. (Depoimento de Rachel Rocha).O último encontro com irmãos de Raquel, em Presidente Prudente em 2020. Lucas da esquerda para direita, de pé, de óculos escuros e camiseta marinho. Contraiu a doença hospitalizado e faleceu em novembro.

O último encontro com irmãos de Rachel, em Presidente Prudente em 2020. Lucas da esquerda para direita, de pé, de óculos escuros e camiseta marinho. Contraiu a doença hospitalizado e faleceu em novembro.

Adilson está de pé, de camiseta branca, ao de Raquel.

Adilson está de pé, de camiseta branca, ao de Rachel.