Hoje em dia, com a tecnologia, podemos ter acesso à entretenimento, cultura e informações com alguns cliques, mas dificilmente pensamos nos impactos sociais que ela gerou quando surgiu, ou mesmo nos impactos que ela ainda causa na sociedade.
Bruno Yuji Ishiyama e Fábio Quiochi Tanaka
Hoje, com o avanço da usabilidade dos diversos dispositivos conectados à Web e dos aplicativos que podem ser instalados neles, ler, comentar, editar e criar conteúdo se tornou trivial, de forma que qualquer pessoa pode realizar tais tarefas sem nenhum conhecimento técnico de como e porque a internet funciona [1][2].
No entanto, o acesso a essa ferramenta – a internet – nem sempre foi tão simples. No início da Web, conhecida como Web 1.0, o conteúdo era focado na venda de produtos e serviços por meio de websites cujos conteúdos eram apresentados de maneira estática, ademais, tarefas como publicação de conteúdos e manutenção dos websites eram dispendiosas e fatigantes. Esse ambiente não era propício para criação de conteúdo, principalmente por aqueles que não dominavam as tecnologias envolvidas na publicação de websites. Por ser focado em interesses corporativos, o formato da Web até então tratava o internauta como um mero receptor de informações.
Ainda assim, seu surgimento acarretou uma quebra dos paradigmas relacionados à comunicação, uma vez que tornou possível enviar informações de maneira surpreendentemente rápida e de forma que, até então, nenhuma tecnologia conseguira [1].
Com o surgimento da Web 2.0, o usuário passou a ter o controle tanto do acesso quanto da edição e criação de novos conteúdos, tornando-se então mais ativo em relação à produção de informações. “As diferenças mais acentuadas entre a Web 1.0 e a Web 2.0 talvez sejam a democratização da engenharia da informação e da comunicação e a socialização do conhecimento pela Web.” [3]. Em outras palavras, a Web se tornou um espaço livre para que usuários gerem conteúdo, estando eles limitados somente pela existência de uma conexão com a internet. Popularizou-se então a utilização de blogs, do webjornalismo participativo e enciclopédias montadas colaborativamente.
Atualmente, não há um consenso em relação à classificação que a Web deve receber. Isso ocorre devido à falta de uma definição clara e distinta do que seja, de fato, a Web 3.0 [4]. Contudo, há um consenso entre os estudiosos da evolução da Web que a utilização de aplicativos mobile, websites e ferramentas de pesquisa sejam capazes de transformar os dados disponíveis na rede em informação, de maneira inteligente e, eventualmente, transformá-la em conhecimento é uma tendência, ou consequência, desse novo paradigma [5].
Com o avanço da democratização da Web, surgiram oportunidades para a ampliação da cultura colaborativa. A proposta da Web 3.0 é gerar conhecimento de maneira eficaz e eficiente, aproveitando ao máximo a inteligência humana, e impulsionando a criatividade e o senso crítico da sociedade ao acesso livre a essas informações. A cultura colaborativa impactou no estilo de vida da sociedade como um todo, proporcionando novos modelos de serviços, tais como de consumo, empresariais e de interação social, por meio do uso massivo de aplicativos mobile (apps), wikis e redes sociais.
Novas tecnologias, como inteligência artificial juntamente com aplicativos mobile e novos meios de análise de dados, têm aumentado o impacto gerado pelo acesso à Internet na sociedade mundial, produzindo novos comportamentos em áreas como educação, política, na prestação de serviços em geral e entretenimento, e a Web 3.0 vem modificando até mesmo o relacionamento entre o usuário e a tecnologia, tornando-a cada vez mais inteligente e parte do seu dia-a-dia.
Como forma de ilustrar a maneira com que o avanço da tecnologia e da Web impactam de maneira cada vez mais direta o nosso cotidiano, apresentaremos alguns exemplos de iniciativas que, são responsáveis por tal efeito. Essas iniciativas afetam os mais diversos públicos e tópicos, como educação e empreendedorismo, e algumas dessas iniciativas possuem como fator crítico para seu funcionamento a colaboração e a interação entre os usuários de uma plataforma, como o caso do Catarse que será abordado mais para frente no texto.
Khan Academy:
O Khan Academy é uma plataforma gratuita de ensino online que oferece diversos materiais didáticos, inclusive videoaulas, traduzidos para mais de 24 línguas, com conteúdo que abrange desde assuntos do ensino fundamental até o ensino superior. A plataforma é utilizada por mais de 6 milhões de estudantes mensalmente, que resolvem mais de 2 milhões de problemas por dia. Foi criada por Salman Khan, que começou gravando e publicando gratuitamente videoaulas de matemática na internet. Hoje, ele sozinho já gravou mais de 3000 videoaulas em seu closet. Atualmente a plataforma é mantida por meio de doações e também conta com a ajuda de voluntários em tarefas como tradução e revisão [6][7].
Thordarson, uma professora de matemática, utiliza o Khan Academy para “inverter” a forma com que as suas aulas funcionam. Para isso, ela substitui algumas de suas aulas expositivas por vídeos do Khan Academy, aos quais os alunos podem assistir em casa seguindo o seu próprio ritmo de aprendizado. Dessa forma, na sala de aula, os alunos podem focar na resolução de exercícios. O resultado dessa iniciativa foi que, com o auxílio do Khan Academy, ela pode dar mais atenção para os alunos com dificuldade, e os alunos com maior facilidade podem avançar mais no aprendizado. No fim do ano, apenas 3% de seus alunos foram classificados como na média ou pior que a média nos testes finais [7].
O Khan Academy, como ferramenta auxiliar dos professores, consegue trazer aos alunos um pouco da experiência do ensino tutorial, no qual um professor ensina um aluno individualmente e de forma personalizada, provocando um grande aumento no desempenho dos alunos, visto que estes que são ensinados seguindo o modelo tutorial possuem em média quase o dobro de desempenho em relação aos alunos do ensino convencional [8].
Outros exemplos de iniciativas parecidas com a Khan Academy são o Me Salva!, que é uma plataforma de ensino brasileira com o foco um pouco mais forte para os vestibulares [9], e o Duolingo que é uma plataforma de ensino de diversos idiomas [10].
Alarma Sismos:
O Alarma Sismos foi o projeto de Sebastian Alegria, desenvolvido por ele quando tinha apenas 14 anos.
Após ver na televisão um detector de terremotos japonês, o jovem resolveu implementar algo parecido em seu país, o Chile, que também sofre frequentemente com desastres dessa mesma natureza. Para isso, ele comprou, via internet, um detector de movimentos de baixo custo e substituiu o circuito interno por um microcontrolador comum, o Arduino. Assim, fez com que o Arduino interpretasse os sinais gerados pelo detector e, baseados neles, criou um software que realiza uma postagem na rede social Twitter, avisando a todos os seus seguidores sobre o perigo.
A iniciativa rapidamente chamou a atenção da mídia, que voluntariamente divulgou o projeto Alarma Sismos, fazendo com que, rapidamente, o projeto conseguisse um grande número de seguidores em sua conta no Twitter. Além disso, houve uma grande mobilização de pessoas que se voluntariaram para ajudar no projeto, testando a futura aplicação para smartphones ou até mesmo oferecendo dinheiro para a compra e a instalação de novos detectores em suas próprias casas, a fim de melhorar o alcance e a acurácia do sistema [11][12].
Catarse:
O Catarse é uma plataforma de financiamento coletivo para arrecadação de fundos por meio de doações via internet, para que se atinja o montante necessário para realizar um projeto [13]. Em 2016, foram publicados mais de 5600 projetos e mais de 16 milhões de reais foram arrecadados [14]. Trata-se de “um movimento que visa estimular valores como autonomia, diversidade, empatia, proximidade, união, liberdade e colaboração.” [15].
O Catarse abre a possibilidade para que pessoas com poucos recursos financeiros consigam “tirar seus projetos do papel”. Tudo isso por meio de pessoas com interesses comuns se juntando e com vontade de ver o resultado.
Uma consequência do crescimento e popularização do Catarse e de outras plataformas de financiamento coletivo é o crescimento de mercados no Brasil que possuem um grande público, porém tem baixa produção de conteúdo nacional [16], como o mercado de quadrinhos, games e jogos de tabuleiro que já arrecadaram mais de 7 milhões de reais só pelo Catarse [17].
Outras plataformas de financiamento coletivo que podem ser mencionadas são: Kickstarter, uma das pioneiras nessa modalidade e uma das maiores do gênero [18], e Benfeitoria, que possui o foco em projetos que gerem “impacto cultural, social, econômico e ambiental”, sem cobrar taxa dos projetos [19].
![Financiamento coletivo é baseado em boas idéias e pessoas que gostariam de ver a ideia se concretizar. By https://snob.ru/profile/29514/blog/97564?v=1454918986 [CC BY-SA 4.0 (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0)], via Wikimedia Commons](https://www.each.usp.br/petsi/jornal/wp-content/uploads/2017/05/Crowdfundingescense.jpg)
GitHub:
O GitHub é uma plataforma de hospedagem e compartilhamento de código que, hoje, possui mais de 22 milhões de desenvolvedores cadastrados e mais de 59 milhões de repositórios hospedados [20]. Mas o que faz do GitHub uma plataforma transformadora é o fato dele ser a maior comunidade de compartilhamento de código aberto do mundo [21].
O modelo de desenvolvimento em código aberto permite que você deixe o acesso ao código do seu projeto livre para qualquer desenvolvedor no mundo, para que assim ele possa contribuir no desenvolvimento do seu código, escrevendo novas funções, apontando erros, etc. Essa forma de desenvolvimento de código, que conta com a colaboração de outros para o desenvolvimento de um código melhor, vem se tornando cada vez mais popular, até mesmo empresas grandes como Google, Twitter e Facebook realizam projetos com código aberto [22].
Algumas das plataformas alternativas para o desenvolvimento de código aberto são: Bitbucket [23] e o Sourceforge [24].
Operação Serenata de Amor:
A Operação Serenata de Amor é uma organização sem fins lucrativos, criada pelo grupo Data Science Brigade, que utiliza técnicas de inteligência artificial para monitorar os gastos da verba pública, realizadas por meio da chamada “cota para o exercício parlamentar”. Essa cota prevê a indenização dos gastos com alimentação, transporte, hospedagem, contratação de consultorias, entre outros, por deputados exclusivamente vinculados ao exercício da atividade parlamentar [25].
O projeto foi inspirado na chamada Operação Política Supervisionada (OPS), que se trata de uma “ONG em processo de formalização que fiscaliza os gastos com o dinheiro público, sobretudo da verba indenizatória dos deputados federais e de senadores.” [26]. Esse projeto, por meio da fiscalização manual feita por uma rede de voluntários, já conseguiu retornar mais de 5 milhões de reais em gastos ilegais [26]. Existem alguns exemplos reais de casos de gasto indevido de verba pública, como por exemplo um único almoço no valor injustificável de R$ 1.495,00 em um restaurante [27] ou um gasto de R$ 36.499,50 em papelaria no período de 3 meses [28].
A Operação Serenata de Amor utiliza técnicas de aprendizagem de máquina¹ para realizar a tarefa de análise de todos os comprovantes e notas fiscais apresentadas pelos beneficiários da verba indenizatória para reembolso, que são abertos à população pela Lei Federal da Transparência [29], de forma mais eficiente do que um analista.
Para concretizar o projeto, o grupo contou com o auxílio do Catarse para a arrecadação de fundos. Além disso, o software utilizado para analisar os dados e procurar por possíveis fraudes foi desenvolvido todo em código aberto no GitHub, permitindo assim que todas as pessoas com interesse possam auxiliar o desenvolvimento do código [30].
Diante dos exemplos discutidos, podemos observar que, com o avanço da tecnologia e a cultura da colaboração, é possível causar um grande impacto social utilizando cada vez menos recursos. Plataformas de financiamento coletivo e desenvolvimento colaborativo, hardwares de baixo custo e o aumento da população com acesso à internet democratizam cada vez mais o direito de criar e inovar. Assim, podemos esperar cada vez mais iniciativas inovadoras vindas de pessoas de todos os perfis, localidades e projetos cada vez mais interdisciplinares e interculturais.
É importante salientar também que a democratização ao acesso à tecnologia também possui consequências negativas. Com o nível de anonimato que a internet oferece, pessoas mal intencionadas procuram oportunidades de ganhar dinheiro de forma fraudulenta, de espalhar um vírus, ou de roubar informações e realizar venda de produtos proibidos [31]. Além disso, existem diversos casos em que a tecnologia pode ser utilizada para fins escusos, como propagação de conteúdo ofensivo, invasão de privacidade, etc. Portanto, a discussão do tema e conscientização da sociedade, que está cada vez mais dependente da tecnologia, se mostra vital para evitar tais perigos.
¹ técnica de aprendizagem de máquina consiste em fazer com que o algoritmo aprenda uma tarefa com base em experiências passadas [32].
Referências:
[1]
https://arxiv.org/html/cs/9901011
A Brief History of the Internet
LEINER Barry M.; CERF Vinton G.; CLARK David D.; KAHN Robert E.; KLEINROCK Leonard; LYNCH Daniel C.; POSTEL Jon; ROBERTS Larry G.; WOLFF Stephen.
Janeiro 1999.
[2]
http://paginas.fe.up.pt/~projfeup/cd_2009_10/relatorios/R403.pdf
A WEB 2.0.
SILVA, Ana; GONÇALVES André; SILVA César; ROSA; PINTO Paulo; LOPES Simão; MOTA Tiago.
Outubro 2009.
[3]
http://www.sied-enped2016.ead.ufscar.br/ojs/index.php/sied/article/view/22/8
FERRAMENTAS DE ESCRITA COLABORATIVA DA WEB 2.0 E MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA POR COMPUTADOR: CONSTRUÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO DO
CONHECIMENTO ON-LINE
COSTA, Júlio Resende.
Setembro 2012.
[4]
https://www.lifewire.com/what-is-web-3-0-3486623
What Is Web 3.0 and Is It Here Yet?
NATIONS, Daniel.
Março de 2017.
[5]
https://aquare.la/pt/artigos/2015/03/18/web-3-0-e-sua-importancia-nos-negocios/
O que é a web 3.0? Qual sua importância para os negócios?
SANTOS,Marcos;HOPPEN, Joni.
Março de 2015.
[6]
One Man, One Computer, 10 Million Students: How Khan Academy Is Reinventing Education.
NOER, Michael.
Novembro 2012.
[7]
https://www.wired.com/2011/07/ff_khan/
How Khan Academy is changing the rules of education.
THOMPSON, Clive.
Julho 2011.
[8]
http://www.ascd.org/ASCD/pdf/journals/ed_lead/el_198405_bloom.pdf
The Search for Methods of Group Instruction as Effective as One-to-One Tutoring.
BLOOM, Benjamin S..
Maio de 1984.
[9]
[10]
[11]
https://thenextweb.com/la/2011/07/18/meet-the-chilean-teen-who-warns-of-earthquakes-on-twitter/
Meet the chilean teen who warns of earthquakes on Twitter.
HEIM, Anna.
Julho 2011.
[12]
https://www.youtube.com/watch?v=W6eZ09sqi94
How I built an earthquake alert when I was 14: Sebastián Alegría at TEDxSantiago
Acessado em: 04/2017.
[13]
http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sul2012/resumos/R30-1090-1.pdf
Crowdfunding: O Financiamento Coletivo como Mecanismo de Fomento à Produção Audiovisual.
VALIATI, Vanessa Amália Dalpizol;TIETZMANN, Roberto.
Junho de 2012.
[14]
https://ano.catarse.me/2016?ref=ctrse_blog
[15]
http://blog.catarse.me/o-ano-de-2016-no-catarse/
O ano de 2016 no Catarse.
Janeiro de 2017.
[16]
Setor de games no Brasil é concentrado e fatura pouco.
SETTI, Rennan.
Março de 2014.
[17]
http://blog.catarse.me/jogos-e-quadrinhos-ultrapassam-r7-milhoes-arrecadados-no-catarse/
Infográfico: Jogos e quadrinhos ultrapassam R$7 milhões arrecadados no Catarse.
ALEANDRO, Geraldo.
Abril de 2017.
[18]
[19]
[20]
[21]
https://github.com/open-source
[22]
https://www.wired.com/2015/03/github-conquered-google-microsoft-everyone-else/
How GitHub Conquered Google, Microsoft, and Everyone Else.
Dezembro de 2015.
[23]
[24]
[25]
Cota para o exercício da atividade parlamentar.
Acessado em: 04/2017.
[26]
https://luciobig.com.br/o-que-e-ops/
Acessado em: 04/2017.
[27]
https://luciobig.com.br/2015/12/13/deputado-comilao-devolve-r-1-4950-aos-cofres-publicos
Deputado comilão devolve R$ 1.495,00 aos cofres públicos.
BIG, Lúcio.
Dezembro de 2015.
[28]
http://www.canaldootario.com.br/blog/o-castelo-de-papel/
O Castelo de Papel.
BIG, Lúcio.
Setembro de 2014.
[29]
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm
LEI Nº 12.527, DE 18 DE NOVEMBRO DE 2011.
[30]
https://github.com/datasciencebr/serenata-de-amor
Artificial Intelligence for social control of public administration.
Acessado em: 04/2017.
[31]
Criador do site Silk Road é condenado à prisão perpétua.
Maio de 2015.
[32]
https://www.cs.princeton.edu/courses/archive/spr08/cos511/scribe_notes/0204.pdf
COS 511: Theoretical Machine Learning.
SCHAPIRE, Rob.
Fevereiro de 2008.