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  • Editorial

    Editorial

    por 
    os editores
    resumo 
    A Revista Estudos Culturais chega agora ao seu número três, no mesmo momento em que o Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais da EACH-USP completa seu sexto ano de atuação. O amadurecimento de nossas empreitada é marcado pela amplitude dos temas desta edição da Revista. O campo dos estudos culturais, sempre liberto das amarras disciplinares tradicionais, aparece aqui em várias de suas múltiplas chaves.
  • Sobre os autores

    Sobre os autores

    resumo 
    Eduardo Wanderley Martins, Carlos Velázquez, Damián Cabrera, Madalena Pedroso Aulicino, Daniela Signorini Marcilio, Agnès García Ventura, André Vitor Brandão Kfuri Borba e Mariana Moreira.
  • Mídia: o Novo Totem Dessacralizado

    Mídia: o Novo Totem Dessacralizado

    por 
    Eduardo Wanderley Martins e Carlos Velázquez
    resumo 
    O presente texto tem como objetivo refletir sobre a função de mediação da Mídia para o Sagrado, partindo da concepção de Mídia como novo totem nas sociedades contemporâneas. Sob a metodologia indutivo-analítica de base bibliográfica e documental, explora-se a hipótese de que a mídia, como novo totem nas sociedades midiáticas , cumpre a função organizadora, mas não a função mediadora. A mídia não liga as aspirações e necessidades humanas ao Transcendente, encerrando em si mesma a satisfação dessas aspirações através do fornecimento de bens simbólicos, mas que não têm contato com suas fontes originárias – não há relação com o Sagrado. Dessa forma, a mídia se apresenta nas sociedades midiáticas como um totem dessacralizado - oferece bens de grandes valores universais, mas desprovidos de lastro divino.
    palavras-chave 
  • Literatura paraguay/guaraní - transversalidades

    Literatura paraguay/guaraní - transversalidades

    por 
    Damián Cabrera
    resumo 
    Passando por trabalhos compilatórios dos escritores paraguaios Augusto Roa Bastos e Rubén Bareiro Saguier, e a partir de discursos literários e não literários, analisa-se a ambiguidade fundada na palavra guarani; que designa, indistintamente, uma língua, uma cultura, uma etnia; e que, por metonímia, constitui-se em apelido-gentílico dos paraguaios. Relações entre literatura paraguaia e literatura Guarani são exploradas, desde a perspectiva dos autores citados; tanto conhecedores e divulgadores da mesma, como dois dos poucos paraguaios capazes de ultrapassar um cerco de isolamento cultural graças, em parte, ao exílio político; sob a luz de uma tradição crítica latino-americana hispanizante que, enquanto invisibiliza a literatura paraguaia, contribui com uma mistificação dela, fundada em sua peculiaridade linguística, seja ela real ou inventada.
    palavras-chave 
  • O brincar e o saber de experiência: uma forma de resistir

    O brincar e o saber de experiência: uma forma de resistir

    por 
    Madalena Pedroso Aulicino e Daniela Marcílio
    resumo 
    O brincar é uma atividade livre e séria, possui finalidade autônoma e é um intervalo da vida cotidiana (HUIZINGA, 2005; CAILLOIS, 1990). A criança se desenvolve, adquire experiência, constrói e transmite sua cultura lúdica brincando (WINNICOTT, 1979; BROUGÈRE, 2008). Mas, que brincar é esse promovido e recomendado na atualidade? O objetivo desse artigo é refletir sobre a redução do tempo da infância em prol de uma ideologia da produção e do consumo, que valoriza a informação, o conhecimento e o aprendizado técnico e científico, e reduz o “saber de experiência” (BONDÍA, 2002). Nesse contexto, a retomada do brincar como atividade livre e uma experiência de vida seria uma possibilidade de resistência aos valores vigentes. Constatou-se que os Estudos Culturais como estratégia crítica e política podem contribuir para repensar o brincar hoje.
    palavras-chave 
  • Investigación feminista, historia de las mujeres y mujeres en la historia en los estudios sobre Próximo Oriente Antiguo

    Investigación feminista, historia de las mujeres y mujeres en la historia en los estudios sobre Próximo Oriente Antiguo

    por 
    Agnès García Ventura
    resumo 
    Suele decirse que el estudio del pasado siempre tiene relación con el presente y con el futuro, bien porque presente y futuro se construyen a su imagen y semejanza, bien porque no podemos imaginar un pasado sin los referentes de nuestro presente. Por este motivo, ocuparse de la historia de las mujeres en la Antigüedad y de cómo incluir a las mujeres en la historia, nos permite reflexionar acerca de la situación de las mujeres en el mundo presente en el que vivimos y en el mundo futuro en el que querríamos vivir. En este artículo propongo aproximarnos a este tema con las herramientas críticas de la investigación feminista, ilustrando la propuesta con algunos ejemplos acerca de cómo algunos sesgos pueden afectar al modo en que se aborda el estudio de las vidas de las mujeres en el Próximo Oriente Antiguo.
  • A higienização do século XIX e o "contra corrupção" do século XXI: Similaridades no discurso das elites no Brasil

    A higienização do século XIX e o "contra corrupção" do século XXI: Similaridades no discurso das elites no Brasil

    por 
    André Vitor
    resumo 
    Cada momento histórico é único, mas carrega em si tensões permanentes, num paradoxo entre o novo e o velho, valendo-se de novas experiências sem, entretanto, negar toda a bagagem cultural adquirida. Assim, este trabalho busca relacionar dois momentos distintos da história do Brasil, mas com características em comum: a higienização do início da República e o momento recente, em que estava em jogo o mandato da presidente Dilma Rousseff. Por ser o Brasil um país com pouca mobilidade social e sem alterações substanciais no seu controle político, veremos como os interesses das camadas superiores da sociedade se reproduzem e se perpetuam, no intuito de fazer a população aderir a essa ideologia em favor de seus interesses privados.
    palavras-chave 
  • Resenha do livro Memória Coletiva e Identidade Nacional, Miryam Santos

    Resenha do livro Memória Coletiva e Identidade Nacional, Miryam Santos

    por 
    Mariana Moreira
    resumo 
    A presente resenha aborda o livro “Memória Coletiva e Identidade Nacional”, de autoria de Myrian Sepúlveda dos Santos. Importante pesquisadora de temas como memória, identidade, práticas políticas, culturais e relações raciais, obteve seu título de doutora em Sociologia pela New School for Reserch de Nova Iorque e desenvolveu pesquisas em pós-doutorado no Centro de Estudos Latino-Americanos da University of Cambridge; no Centro de Pesquisa sobre Relações Sociais da Université de Paris V e no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Atualmente é professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e coordena o Grupo de Pesquisa Cultura e Poder, registrado no CNPQ Arte, e o museu Afrodigital. Suas análises abordam teorias de nomes de grande relevância para os Estudos Culturais como Karl Marx, Walter Benjamin, Michel Foucault, Maurice Halbwach, Stuart Hall entre outros.
    palavras-chave 

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  • Temporalidades

    Temporalidades

    por 
    Luiz Menna-Barreto e Mario Pedrazzoli
    resumo 
    Esta edição da Revista Estudos Culturais foi dedicada a estudos sobre o tempo, tema recorrente em diversas áreas do conhecimento e que vem adquirindo relevância crescente num mundo globalizado no qual as pessoas acabam se expondo a desafios inéditos até meados do século XX. Atravessamos fusos horários, acompanhamos bolsas de valores em Tóquio e Nova York e assistimos a jogos que ocorrem do lado oposto do planeta, numa sucessão de eventos que acontecem em tempos próprios e que nem sempre coincidem com os tempos de cada indivíduo. Surge nesse contexto certa tensão entre nossas percepções da passagem do tempo, aquela interna que dialoga com nosso sono ou fome e a outra externa, imposta pelos vários relógios aos quais tentamos obedecer. Dessa tensão emergem reflexões que trazemos aos leitores, reflexões inspiradas em diferentes olhares que vão desde aspectos filosóficos e sociológicos a aspectos biológicos.
  • Sobre os autores

    Sobre os autores

    resumo 
    Luiz Menna-Barreto, Mario Pedrazzoli, Robert Levine, Muara Kizzi Figueiredo, Rafael H. Silveira, Rafael Chequer Bauer, Alexandre Panosso Neto e Luiz Gonzaga Godoi Trigo escrevem no número dois da Revista de Estudos Culturais.
  • Ordem e progresso, aceleração e alienação

    Ordem e progresso, aceleração e alienação

    por 
    Rafael H. Silveira
    resumo 
    Como diversos exemplos dados em Aceleração e alienação [1] [1] ROSA, Hartmut. Beschleunigung und Entfremdung: Entwurf einer kritischen Theorie spätmoderner Zeitlichkeit. Traduzido do inglês para o alemão por Robin Celikates. Berlim: Suhrkamp Verlag, 2013. confirmam, a condição de especialista no campo da aceleração social muitas vezes não exime o próprio autor da ação dos fenômenos por ele analisados – sobretudo por se tratar de uma das personalidades acadêmicas mais conhecidas, citadas e requisitadas na imprensa alemã atualmente. Como minha resenha da análise de Hartmut Rosa mostra, a obra está longe de ser die Entdeckung der Langsamkeit ou um éloge de la lenteur, como interpretado por alguns. No diálogo, conduzido em 23/10/2014 na cidade de Jena, Alemanha, originalmente em alemão, transcrito, editado e traduzido para o português por Rafael H. Silveira, são abordados pontos que complementam o entendimento da Teoria da Aceleração através de uma perspectiva voltada para a realidade brasileira.
  • Tempo e bem estar

    Tempo e bem estar

    por 
    Robert Levine
    resumo 
    Neste artigo examino o impacto da experiência temporal – o emprego do tempo, concepções do tempo e normas temporais - sobre a felicidade e o bem estar; sugiro políticas públicas voltadas à ampliação dessa experiência. Inicio com uma revisão da literatura relativa às interrelações entre o tempo, dinheiro e felicidade. Em segundo lugar, reviso dados e questões em torno dos horários de trabalho e não trabalho ao redor do mundo. Em terceiro lugar, descrevo numa perspectiva mais ampla as questões temporal que deveriam ser levadas em consideração nas decisões de políticas públicas, por exemplo, medidas de relógio versus eventos, enfoques monocrônicos versus policrônicos, definições de tempo perdido, ritmo de vida e orientação temporal. Concluo com sugestões para a elaboração de políticas do emprego do tempo voltadas para aumentar a felicidade individual e coletiva. Trata-se de um truísmo virtual o modo como empregamos nosso tempo se expressa no modo como vivemos nossas vidas. Nosso tempo é o bem mais valioso do qual dispomos. Boa parte desse tempo, no entanto, é controlado por outros, desde nossos empregadores até nossos familiares mais próximos. Também está claro que existem diferenças profundas – individuais, sócio econômicas, culturais e nacionais – no grau de controle que indivíduos exercem sobre seus próprios tempos (ver p. exemplo LEVINE, 1997; LEE, et al., 2007). Pode ser argumentado que políticas públicas são necessárias para proteger os “direitos temporais” dos indivíduos, particularmente aqueles mais vulneráveis à exploração. Este artigo foi motivado por um projeto de largo espectro do qual tive a oportunidade de participar. O projeto começou na primavera de 2012 na sequência de uma resolução da ONU, aprovada por unanimidade em sua Assembleia Geral, na qual “felicidade” foi incluída na agenda global. O Butão foi convidado a receber um grupo interdisciplinar de “experts” internacionais com a tarefa de elaborar recomendações para incentivar a busca da felicidade no planeta; mais especificamente desenvolver um “novo paradigma para o desenvolvimento mundial”. O Butão é um pequeno país pobre, cercado de montanhas na região do Himalaia, foi escolhido para essa tarefa em função do pioneirismo de seu projeto de “Felicidade Nacional Bruta” - FNB (Gross National Happiness - GNH). “Progresso” na definição dos autores desse projeto, “deveria ser visto não apenas através das lentes da economia como também a partir de perspectivas espirituais, sociais, culturais e ecológicas”. Felicidade e desenvolvimento, em outras palavras, dependem em mais fatores do que o crescimento e acumulação de capital. Inglaterra, Canadá e outros países e organizações de dimensões nacionais seguiram na mesma direção do Butão, estabelecendo medidas de FNB (LEVINE, 2013). Um dos domínios centrais do índice de FNB do Butão é “emprego do tempo” que correspondeu à minha participação no relatório do grupo de estudo. Este artigo está bastante apoiado naquele relatório e nas inferências que o projeto me proporcionou. Discuto quatro conjuntos de temas: I. As interrelações entre tome, dinheiro e felicidade. Máxima importância, qual a relevância do emprego do tempo com o bem estar e a felicidade? II. Emprego do tempo: questão dos horários e políticas de organização do trabalho. III. Outors fatores tempais que devem ser considerados ao formularo políticas de promoção de felicidade.. IV. Sugestões para elaboração de políticas: a chamada para uma “Lei de Direitos Temporais”.
  • A ilusão dos relógios: uma ameaça à saúde

    A ilusão dos relógios: uma ameaça à saúde

    por 
    Mario Pedrazzoli
    resumo 
    A mecanicidade ou digitalidade dos relógios representa a imutabilidade da duração de frações de tempo. A contagem das 24h de um dia teve como referência, a princípio, as pistas ambientais associadas às condições do dia e da noite que são diferentes em diferentes locais da terra e portanto mutáveis. A emergência de uma sub-área da Biologia, a Cronobiologia, em meados do século XX permitiu a interpretação de que a apreensão do tempo de um dia como regularidade mecânica aliena os seres humanos da percepção da temporalidade diária como integração entre temporalidade ambiental e temporalidade biológica. Pretendo demonstrar que esse equívoco perceptual da duração do tempo de um dia pode ter como consequência uma desorganização temporal fisiológica que é a origem ou está associada a origem de muitas doenças modernas.
  • Os horários fora de lugar – ritmos biológicos e literatura

    Os horários fora de lugar – ritmos biológicos e literatura

    por 
    Muara Kizzy Figueiredo
    resumo 
    Este trabalho analisa a relação existente entre personagens e ambiente e objetiva investigar como, supostamente, se deu a implantação no Brasil do século XIX dos ritmos sociais europeus, tendo em vista os ritmos biológicos da população brasileira (em termos coletivos) – adaptada ao ambiente tropical. Para tal estudo, foram analisados alguns textos literários do período (em especial a obra de Machado de Assis e Eça de Queirós) - visando identificar menções aos horários de sono, refeições, atividades sociais e aspectos do sono; bem como a leitura de autores contemporâneos que discutem a construção de identidades nacionais – em especial no Brasil – e ainda; autores que investigam a temática do tempo – seja em termos cronológicos, psicológicos e biológicos.
    palavras-chave 
  • Slow movement: reação ao descompasso entre ritmos sociais e biológicos

    Slow movement: reação ao descompasso entre ritmos sociais e biológicos

    por 
    Rafael Chequer Bauer, Alexandre Panosso Netto e Luiz Gonzaga Godoi Trigo
    resumo 
    Este artigo discute o descompasso entre os ritmos biológicos e os ritmos sociais emergentes a partir da Revolução Industrial. Para tal, são apresentados indícios de mudanças rítmicas nas últimas décadas, acarretando um processo contínuo e profundo de aceleração e mecanização sociocultural, predominante nas estruturas societárias capitalistas. Em seguida, discute-se a relação entre ritmos sociais e ritmos biológicos, com a contribuição conceitual advinda da Cronobiologia. Por fim, destaca-se o processo de surgimento e consolidação do Slow Movement nas últimas décadas, tornando-se mais um indício da desarticulação temporal vivenciada nos dias atuais.
  • Os tempos da vida

    Os tempos da vida

    por 
    Luiz Menna-Barreto
    resumo 
    O tema do tempo tem atraído bastante atenção no ambiente acadêmico contemporâneo. Apresentarei uma abordagem na qual são associados os conceitos de condicionamento reflexo clássico com a cronobiologia, área na qual a dimensão temporal da matéria viva é explorada. O conceito de antecipação é proposto como elo central dessa associação. Discuto a seguir os níveis de determinação que podem ser propostos a partir da observação de fenômenos temporais nos organismos. Concluo com as noções de desafios e armadilhas temporais que parecem caracterizar fortemente os dilemas humanos num mundo globalizado, conduzindo a diferentes processos de adaptação resultantes desses desafios e armadilhas.
  • Resenha do livro Aceleração e alienação: Esboço de uma teoria crítica da temporalidade na Modernidade tardia, Harmut Rosa

    Resenha do livro Aceleração e alienação: Esboço de uma teoria crítica da temporalidade na Modernidade tardia, Harmut Rosa

    por 
    Rafael H. Silveira
    resumo 
    Em Aceleração e alienação: Esboço de uma teoria crítica da temporalidade na Modernidade tardia, Hartmut Rosa recapitula resumidamente e amplia sua Teoria da Aceleração Social. A ampliação da teoria se dá em primeiro lugar através da análise de elementos desaceleradores da tendência aceleratória e, em seguida, da análise das consequências da aceleração para a Teoria Crítica social atual, cujos questionamentos levantados e respostas dadas até o presente momento não apresentariam uma solução para a perda da credibilidade do projeto da Modernidade, uma vez que a aceleração social teria sucumbido e instrumentalizado a possibilidade de autonomia prometida. Partindo da busca de uma resposta à questão de o que seria uma vida plena, Rosa retraça, assim, o contexto do surgimento de diferentes categorias de alienação, retratando em sua teoria uma tendência social crescente extremamente relevante e em crescimento na era moderna.
artigo anterior 

Alfabetização científica e cartográfica no ensino de ciências e geografia: polissemia do termo, processos de enculturação e suas implicações para o ensino

por 
Veronica Guridi e Valeria Cazetta
resumo 
Neste trabalho realizamos uma análise crítica com relação ao significado do conceito “alfabetização científica” dentro do campo da Educação em Ciências e em Geografia. Constatamos que o termo é ainda bastante polissêmico e que dependendo do enfoque adotado, se seguem diferentes implicações para o ensino de Ciências. Concluímos mostrando uma definição do termo que incorpora elementos dos recentes estudos na área bem como da vertente dos Estudos Culturais em Educação.
próximo artigo 

A versão encantada da pós-modernidade

por 
Mauro de Mello Leonel e Maira Mesquita
resumo 
O livro em epígrafe tem como objetivo principal relatar com rigor cronológico as origens das versões de pós-modernidade ("não como idéia, mas como fenômeno"), remontando ao modernismo. Numa abordagem incomum o autor percorre, no tempo e nas circunstâncias, as dimensões estéticas, históricas e políticas da express
 
varia

A fome antropofágica - utopias e contradições

por 
Fernanda Oliveira Filgueiras Santos e Mauro de Mello Leonel
resumo 

O Modernismo no Brasil significou um marco, que anunciou o fim de um período cultural caracterizado pelo legado e pelo conservadorismo. O Movimento Antropofágico foi a síntese artística e intelectual dessas reflexões. Este trabalho se propõe a discutir as contribuições e controvérsias deixadas pelo movimento no contexto de urbanização e cosmopolitismo em que ele emergiu na cidade de São Paulo.

 
The anthropophagic hunger – utopias and contradictions
abstract 

The Modernist in Brazil meant a milestone, which marks the end of a period characterized by cultural legacy and conservatism. The Movement Anthropophagic was the synthesis artistic and intellectual of these reflections. This study aims to discuss the contributions and controversies left by the Movement in the context of urbanization and cosmopolitanism in which it emerges in the city of São Paulo

palavras-chave 
 

Introdução

No início do século XX a cidade de São Paulo passou por um grande crescimento demográfico ocasionado pelo processo de urbanização e industrialização por conta da economia cafeeira. Segundo Nicolau Sevcenko (2003), com a mudança da morfologia da cidade formou-se também uma nova rede de relações sociais e consequentemente uma nova vida cotidiana, na qual os que na cidade chegavam fundiam seus hábitos rurais com os hábitos urbanos, até então fora de suas práticas sociais. A mistura de etnias trouxe para São Paulo uma heterogeneidade tal, a ponto de dar características ímpares à composição social possibilitando traços próprios e específicos à nova metrópole.

Nesse contexto, a década de 1920 é um período de insatisfação marcada pelo desejo de renovação política, artística e literária no Brasil, devido às estruturas do poder estarem condicionadas ao domínio oligárquico da política do café com leite da Velha República.

No ano de 1922, o Brasil comemorou o centenário de sua independência política, no entanto, não havia encontrado sua independência cultural, pelo fato de predominar a valorização da cultura europeia. Nesse sentido, a Semana de 1922 deu início ao movimento artístico e literário Modernista que se propõe a por fim a esse período cultural marcado pelo conservadorismo.

A força da Semana vem de sua convocação a todas as artes no quadro do modernismo. Portanto, não temos a intenção de reduzi-la aqui, neste trabalho, apenas à esfera literária.

O presente artigo se propõe a examinar as contribuições e controvérsias deixadas pelo Movimento Antropofágico, que surgiu como a síntese mais radical das reflexões artísticas e literárias do Modernismo brasileiro, em 1928. Como uma proposta de formação cultural para o Brasil, o Movimento será analisado sob uma perspectiva política tendo como cenário a cidade de São Paulo em um período de transição para a vida moderna. Cabe também considerar que a propriedade das manifestações oswaldianas, ligadas à Antropofagia, parece reduzir o modo de ser do brasileiro aos índios, quando, na verdade, havia ocorrido forte imigração africana e europeia.

Do rural ao urbano

De acordo com Nicolau Sevcenko (2003), a partir das primeiras décadas do século XX o Brasil sofre profundas mudanças e os processos de urbanização e industrialização se aceleram. A cidade de São Paulo começa, nesse momento, a passar por um incrível desenvolvimento. Em poucas décadas a cidade transforma-se no importante centro econômico do Brasil, devido à economia cafeeira. A ampliação das ferrovias para o interior atraía também a instalação de indústrias desde o final do século XIX.

Uma nova configuração étnico-cultural se constrói em São Paulo devido à grande diversidade de imigrantes que chegam para a substituição da mão de obra escrava negra nas fazendas de café. Muitos desses imigrantes, como os numerosos italianos na Lapa e na Mooca permaneciam na cidade, por ser passagem obrigatória entre o porto de Santos e as regiões cafeeiras. Parte desses imigrantes se estabeleceram como comerciantes.

Além dos imigrantes, a oligarquia cafeeira se transfere para a cidade a fim de usufruir das comodidades que a vida urbana começava a fornecer, tornando-se possível cuidar tanto dos negócios no interior quanto dos negócios de exportação em Santos. Havia também a presença dos ex-escravos que estavam à margem da sociedade buscando sua sobrevivência nos trabalhos subalternos.

Nesse cenário, segundo Neide Rezende (1993, p.12), a paisagem da cidade começa a se transformar, “alterações físicas eram visíveis [...] construíam-se edifícios, abriam-se avenidas, bondes elétricos e veículos motorizados imprimiam movimento à vida urbana”.

No entanto, para Sevcenko, as mudanças que se processavam no espaço físico da futura metrópole aconteciam de forma segregada. As áreas altas reservadas à elite eram valorizadas com investimento público em infraestrutura. Já as áreas baixas, de várzea de rios, formavam os bairros populares desvalorizados por falta de investimento público e por distanciamento do centro. Por sua vez, o centro também se desvalorizava pela ocupação irregular dos velhos casarões e palacetes e também pela formação de cortiços.

Dá-se, assim, uma hierarquização do espaço urbano e social da cidade entre aqueles que desfrutavam das comodidades da vida urbana moderna paulistana e aqueles que suportavam as contradições desse processo. A utilização de padrões urbanísticos de segregação social não permitiu a permanência das camadas mais pobres uma vez que estes foram empurrados aos poucos à periferia. Negros, imigrantes e caipiras paulistas estavam fora da nova ordem urbana e a vida ruralrepresentava atraso.

Segundo Sevcenko (2003, p.31), São Paulo brota subitamente como um “colossal cogumelo depois da chuva, mostrando-se como um enigma para seus habitantes que, perplexos, tentavam entender esse processo de crescimento súbito de cidade enquanto lutavam para não serem devorados por ela mesma”.

Vale esclarecer que a cidade passava por um grande crescimento demográfico não havendo tempo hábil suficiente para que seus habitantes assimilassem essa transição e integr=assem seus hábitos e costumes de características rurais em uma cidade que caminhava para se tornar umaMetrópole [1] De acordo com o portal da prefeitura de São Paulo verificamos que em 1890, a cidade possuía 64.934 habitantes em 1900, 239.820 já em 1920, 579.033. Enquanto que no mesmo período em nível nacional o Brasil apresentava um crescimento de 14.333.915, 17.318.556 e 30.635.605 respectivamente. Histórico Demográfico do Município de São Paulo: população nos anos de levantamento censitário: MSP, RMSP, ESP E BR (1872 a 2010). Disponível em:. Acesso em: 13 fev. 2012..

Para Bóris Fausto, apesar de todo esse processo de modernização devido à industrialização, na década de 1920, o Brasil ainda prevalece como um país agrícola e,

[...] se caracteriza, nessa época, pela dependência do setor agrário- exportador, pela insignificância dos ramos básicos, pela baixa capitalização, pelo grau incipiente da concentração. [...] As atividades predominantes por setor são as têxteis e as alimentares, sendo significativo notar que os ramos básicos da infra-estrutura industrial (siderurgia, mecânica pesada, por exemplo) não representam contingente apreciável. Trata-se de uma indústria constituída em grande parte por pequenas unidades, característica que se mantém, em linhas gerais, vinte anos depois (FAUSTO, 1997, p. 37).

Embora houvesse um crescimento industrial, o que ainda prevaleceu na economia brasileira foi o setor agrário-exportador. Em São Paulo foi onde essas transformações aconteceram de forma acelerada e “aparece como centro mais importante [...]. A produção paulista representa, em valor,31,5% [...] da produção nacional” (FAUSTO, 1997, p. 38).

Nesse contexto os negros paulistanos, os imigrantes de diversas nacionalidades e os caipiras paulistas tentariam criar modos formais ou informais de sobrevivência. Segundo José Murilo de Carvalho (2010, p.62), o Estado não promovia a política da assistência social e “as poucas medidas tomadas restringiam-se ao meio urbano. No campo, a pequena assistência social que existia era exercida pelos coronéis”.

Essas relações do coronelismo disfarçavam a exploração do trabalhador e ajudam a entender a durabilidade do poder dos coronéis e o porquê de a Primeira República ter ficado conhecida como o governo das oligarquias.

Insatisfeitos com esse quadro alguns setores da sociedade brasileira reivindicavam uma modificação das estruturas de poder e o fim do domínio oligárquico da política do café com leite da velha República. Destacaram-se o movimento Tenentista, o movimento operário lideradoprincipalmente pelos imigrantes italianos anarquistas em busca da inserção do proletariado na vida política e a fundação do Partido Comunista do Brasil por influencia da Revolução Russa de 1917.

Dessa forma, a década de 1920 é marcada pelo desejo latente tanto de renovação política quanto artística e literária. O ano de 1922 tem início com uma revolução cultural e artística: a Semana de Arte Moderna dando inicio ao Movimento Modernista. Esta se inicia em uma época de turbulências políticas, sociais, econômicas e culturais. De acordo com Antonio Candido (1999), este não foi apenas um movimento literário, mas um movimento cultural e social que promoveu a reavaliação da cultura brasileira.

O decênio de 1920 foi cheio de aspirações e medidas renovadoras em todos os campos da vida cultural e social, manifestando uma vitalidade nunca vista antes, que foi a sementeira de profundas modificações no futuro próximo. Os intelectuais, em geral, os artistas e escritores, em particular, passaram a encarar a realidade com olhar mais crítico, denunciando a insuficiência de uma visão oficial que procurava mostrar o país como extensão do modo de ser, de viver e de pensar das suas elites tradicionais. As presenças do negro, do mestiço, do proletário, do campesino espoliado, do imigrante se fizeram sentir com força graças à mudança social e ao advento de novas relações de trabalho, no quadro da urbanização e da indústria em desenvolvimento. Os modernistas foram sensíveis a esse Brasil novo, procurando exprimir a sua variedade por diversas maneiras (CANDIDO, 1999, p. 77).

Ou seja, o objetivo dos modernistas era construir a nação, de fato, repensar a cultura e resgatar as tradições que haviam permanecido ignoradas pela elite colonial. Nesse período, Renato Ortiz (1994) afirma que a noção de raça é substituída pela noção de cultura, a miscigenação passa a ser valorizada e o povo antes visto como entrave à modernização do país, agora, para os modernistas, é a “alma nacional”.

Em 1922, o Brasil comemorava cem anos de independência, contudo não havia encontrado sua independência cultural, uma vez que era predominante a valorização da cultura europeia. “Siga as minhas ideias e verá como ainda não proclamamos direito a nossa independência. Todas as nossas reformas, todas as nossas reações costumam ser dentro do bonde da civilização importadas. Precisamos queimar o bonde”, dizia Oswald de Andrade (2009, p.23). Assim, o modernismo no Brasil significou um marco que delimitou o fim de um período cultural caracterizado pelo conservadorismo.

Tendências culturais que influenciaram o Modernismo

As inovações trazidas pelo Modernismo para a arte brasileira se deram não só no âmbito literário (poesia e prosa), mas também nas artes plásticas, na música, e em todos os segmentos artísticos. Podemos destacar artistas como Anita Malfatti, Victor Brecheret, Di Cavalcanti, Vila Lobos, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Manuel Bandeira, entre muitos outros, que contribuíram para a disseminação dessas ideias na sociedade brasileira. O que permeou a obra desses artistas foi o clima de vanguarda das primeiras décadas do início do século XX, ou seja, os novos ideais estéticos trazidos da Europa.

O Modernismo no Brasil resultou dos impulsos internos e, contraditoriamente, do exemplo europeu. No caso, as vanguardas francesas e italianas, a começar pelo Futurismo, que ofereceram modelos para exprimir a civilização mecânica e o ritmo das grandes cidades numa década marcada pelo desejo latente, tanto de renovação política, quanto artística e literária.

Podemos considerar como acontecimento desencadeador do chamado Movimento Modernista no Brasil a exposição de Anita Malfatti em 1917. Exposição muito criticada por várias pessoas intelectualmente respeitadas no país, como Monteiro Lobato, por exemplo. Anita Malfatti havia passado uma temporada nos Estados Unidos da América e outra na Alemanha, locais onde efetuou seus estudos sobre arte e de onde trouxe influências artísticas.

Às vésperas da I Guerra Mundial, em 1909, Oswald de Andrade também esteve na Europa, e em Paris travou conhecimento com o futurismo de Tomazo Marinetti, pelo qual foi grandemente influenciado.

O contato da nossa intelectualidade com toda essa vanguarda europeia do início do século XX, como a música de Debussy e Milland, o cinema de Chaplin, o cubismo de Picasso, o teatro de Pirandello, entre outras formas de expressão, deram origem ao chamado Modernismo no Brasil.

Os artistas que, efetivamente, renovaram o quadro literário e artístico do Brasil pertenciam à elite paulista e carioca, que tinha acesso a viagens à Europa, concertos, exposições e à literatura. Podemos, assim, dizer que a Semana de Arte Moderna foi concebida pela elite para a elite, pois o público que teve acesso às três noites de apresentações no Teatro Municipal de São Paulo também era composto por intelectuais e pessoas pertencentes às classes sociais mais abastadas.

Quanto à proposta estética do movimento, englobava uma ruptura com os códigos estéticos das gerações anteriores (principalmente em relação ao Parnasianismo e o Simbolismo). A linguagem deveria ser simplificada, a métrica na poesia deveria ser suprimida em favor do chamado “verso livre”.

Além disso, os artistas da época pretendiam valorizar o que era genuinamente brasileiro, o que se traduz no ato de enaltecer o indígena. Podemos ver aqui uma contradição, pois um movimento que foi totalmente influenciado por valores europeus busca um nacionalismo exacerbado e tem no indígena sua fonte de inspiração.

Segundo Neide Rezende, a ideia de realizar o evento da Arte Moderna ou “Revolução sem sangue”, já vinha de muito tempo. Intelectuais e artistas como: Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Graça Aranha, Menotti del Picchia, entre outros, ansiavam por um acontecimento revolucionário na literatura, nas artes plásticas e na música. Tal acontecimento deveria mexer substancialmente com o mundo intelectual brasileiro e para tanto deveria acontecer num recinto muito conceituado, ou seja, num importante teatro da cidade, consequentemente, o Teatro Municipal de São Paulo.

O evento teve apoio logístico e financeiro da burguesia paulista e do presidente da República na época, Washington Luís. É preciso mencionar também o apoio de artistas e intelectuais do Rio de Janeiro como: Villa Lobos, Ronald de Carvalho, entre outros, que vieram fortalecer o acontecimento paulista e o modernismo no Brasil.

A antropofagia no contexto do modernismo

A partir da Semana de 22 outros movimentos vão surgindo no cenário intelectual e artístico brasileiro. O Pau-Brasil (1924) [2][2] “Chamei Pau Brasil à tendência mais vigorosamente esboçada nos últimos anos em aproveitar os elementos desprezados da poesia nacional. Poesia de exportação, dizia eu no meu manifesto de há dois anos. Oposta ao espírito e à forma de importação” (ANDRADE, O. Pau Brasil. O Jornal. Rio de Janeiro, 13.6.1925. In: ANDRADE, O. Os dentes do dragão. Organização, introdução e notas Maria Eugenia Boaventura. São Paulo: Globo, 2009, p. 32 – 33)., Verde-amarelismo ou Anta (1924); [3] [3] Verdeamarelismo ou Escola da Anta foi o grupo modernista liderado por Plínio Salgado, Menotti Del Picchia e Cassiano Ricardo, cujo manifesto Nheengaçu Verde-Amarelo foi lançado em 1929 no jornal Correio Paulistano. Em oposição ao Pau-Brasil, defendia um discurso e uma política tradicionalista com base na defesa de uma sociedade estruturada a partir da religião e da família. Na década de 1930, dará vida à doutrina Integralista, influenciada pelo fascismo italiano, que combatia o pensamento de esquerda. (BOAVENTURA, 2009, p.71). e Antropofagia (1928) [4] Esse conceito será explorado no decorrer o texto. representavam tendências ideológicas diferenciadas de expressar o nacionalismo.

No ano de 1928, mais precisamente no dia 11 de janeiro, Tarsila do Amaral oferece ao marido, Oswald de Andrade, o último quadro que havia pintado como presente de aniversário. Tal presente causou grande impacto em Oswald, que, junto com o amigo Raul Bopp, compôs o nome “Abaporu”, a partir da junção de duas palavras tupi-guarani, aba: homem; poru: que come.

Este quadro tornou-se o símbolo do Movimento Antropofágico, liderado por Oswald de Andrade, que propunha a “deglutição” das estéticas estrangeiras, para reprocessá-las em expressões brasileiras e paradoxalmente originais, ou seja, assimilar (devorar) o que se considerava positivo para a formação da cultura nacional, simbolizado pelo Abaporu de Tarsila do Amaral, que representava a ideia de brasilidade pelas cores e elementos devorados do surrealismo nos seus traços exagerados.

De fato, já no inicio do Modernismo brasileiro, há uma “deglutição” do Movimento de vanguarda europeia, especialmente do Futurismo. O Movimento Antropofágico foi a síntese mais radical dessas reflexões artísticas e intelectuais do Modernismo brasileiro.

Em entrevista ao O Jornal do Rio de Janeiro em 18 de maio de 1928, Oswald observa que o movimento antropofágico tinha como objetivo “assimilar todas as natimorfas tendências estéticas da Europa, assimilá-las elaborá-las em nosso subconsciente, e produzirmos coisa nova, coisa nossa” (ANDRADE, 2009, p. 67).

Oswald propunha a “deglutição“ das estéticas estrangeiras, para reprocessá-las em expressões brasileiras e paradoxalmente originais, ou seja, assimilar (devorar) o que considerava positivo para a formação da cultura nacional.

Segundo Vera Lucia de Oliveira (2002) há uma intenção de se beneficiar desse intercambio cultural, de modo reflexivo, do contato com as correntes da modernidade sem renunciar à própria originalidade, individual e nacional. Metaforicamente, deveríamos devorar e absorver de maneira crítica as influências do "inimigo" externo.

No primeiro número da Revista de Antropofagia [5][5] A partir dessa referência, adotaremos a sigla RA para citar a Revista de Antropofagia. que foi publicada entre maio de 1928 e agosto de 1929, em 26 edições divididas em duas fases (ou dentições, como seus organizadores preferiam), é publicado o Manifesto Antropófago [6]O Manifesto Antropófago, escrito por Oswald de Andrade (1890 - 1954), foi publicado em maio de 1928, no primeiro número da recém-fundada Revista de Antropofagia, veículo de difusão do movimento antropofágico brasileiro. Em linguagem metafórica cheia de aforismos poéticos repletos de humor, o Manifesto torna-se o cerne teórico desse movimento que pretende repensar a questão da dependência cultural no Brasil. In: Enciclopédia Itaú Cultural: artes visuais. Disponível em: <www.itaucultural.org.br. Acesso em: 13 fev. 2012., o qual sugeria um projeto de reconstrução da cultura nacional.

Tomemos a palavra ‘cultura’ como o conjunto de relações que assinalam uma certa fase da história. Estamos diante de um novo espírito, de uma nova cultura. Estamos em face dos tempos novos. No limiar do que eu chamo de ‘cultura da liberdade’ [...] uma cultura que eu não duvido chamar de Antropofagia (REVISTA DE ANTROPOFAGIA , 1975).

Ele referia-se aos novos caminhos que se processavam na Europa, como “a educação sexual preparando a liberdade de amar, a eutanásia, a maternidade consciente” (ANDRADE, 2009, p. 33). Enquanto isso no Brasil, mesmo em meio ao processo de modernização que acontecia em São Paulo, prevalecia uma cultura tradicionalista num país “[...] de superestrutura importada [...] a sociedade conservadora não tem as defesas que têm os países de raça fixa e tradição cultivada” (ANDRADE, 2009, p.51).

A Antropofagia seria justamente, segundo Claúdio Cuccagna (2004), o princípio, pelo qual, devia realizar-se a fusão das heterogeneidades e dos opostos da realidade brasileira. Tupy or not tupy that is the question, declarava Oswald de Andrade no primeiro enunciado do Manifesto de1928. A causa e efeito do “ser-não-ser” antropofágico estava, justamente, nessa busca da formação de uma “identidade nacional”.

Sobre essa busca Renato Ortiz (1994) observa que é na articulação do individual e do social que as identidades são construídas. Ou seja, é do contexto histórico e social, no qual o homem vive que decorrem os modos e as alternativas de identidade, por isso homem deve ser pensado inserido na dinâmica da sociedade e na relação com outros homens. O contexto social da cidade de São Paulo, na década de 1920, como visto, fornece as condições para os mais variados modos e alternativas de identidades.

Nesse sentido, a percepção de uma “identidade brasileira” seria, ainda, algo muito abstrato devido à herança colonial e também às múltiplas culturas e etnias que vão compondo essa sociedade. Também a ideia de pátria manteve-se ambígua até mesmo depois da independência. A identificação emotiva, de acordo com José Murilo de Carvalho (2010), era com a província e o Brasil era uma construção política.

Percebemos que o Movimento tinha como objetivo fundar uma cultura própria, a partir de uma reflexão sobre o passado do Brasil, tendo em vista que “a nossa independência ainda não foi proclamada” (ANDRADE, 2009, p. 65). Como símbolo do Movimento a figura do índio é o princípio aglutinador desse projeto de brasilidade que se pretendia forjar.

O índio antropófago oswaldiano

De acordo com Vera Lúcia de Oliveira (2002) o quase desaparecimento das culturas indígenasdurante o processo de colonização provocou uma tendência literária de recriar um passado compatível com instâncias nativistas e autônomas do Brasil. O passado para esses intelectuais é o índio como figura constante de representação da originalidade brasileira.

Essa identificação do índio, como símbolo da nacionalidade, acontece em duas fases distintas: primeiro na segunda fase do Romantismo (1840-50) com o mito do “bom selvagem” do indianismo romântico tendo como nome principal José de Alencarc [7]José de Alencar (1829 - 1877), o mais importante prosador do Romantismo brasileiro. Alencar manifesta sua posição a respeito das correntes nacionalistas e delineia o programa de literatura indianista que seguiria nos anos seguintes. In: Enciclopédia Itaú Cultural: Romantismo (segunda geração). Disponível em <www.itaucultural.org.br>. Acesso em: 13 mar. 2012. e mais tarde no Modernismo em sua fase nacionalista (1925-30) o índio como o “antropófago” e negação da visão anterior.

O “bom canibal” fundia em si, segundo Cláudio Cuccagna (2004), a essência serena do bom selvagem e do homem natural, com o caráter vingativo, violento e bravo do índio antropófago e tanto um como outro remetiam, segundo as intenções do movimento, a um índio puro, não europeizado, não corrompido pela colonização e catequização ocidentais.

O índio antropófago oswaldiano era um símbolo, do movimento, de liberdade, representatividade e de resistência à colonização. Uma representação do índio puro, pré- cabralino, livre do estado de degradação que a brutalidade da colonização e da catequese europeia enobrecendo as origens da nação brasileira para a criação de uma literatura original diferente da matriz europeia.

Se para o europeu “civilizado” o homem americano era “selvagem”, isto é, inferior, porque praticava o canibalismo, na visão positiva e inovadora de Oswald de Andrade, de acordo com Antonio Candido, essa “índole canibal” permitiria, na esfera da cultura, a assimilação crítica das ideias e modelos europeus. E como antropófagos seriamos capazes de deglutir as formas importadas para produzir algo genuinamente nacional.

Oswald queria um índio “puro”, não ocidentalizado e fiel ao seu estado de originalidade. Era esse o enfoque dado pelos antropófagos nas críticas feitas ao índio idealizado e europeizado da tradição romântica. Nesse sentido o índio antropófago oswaldiano era um símbolo, para os intelectuais do movimento[8] de liberdade, representatividade e de resistência à colonização europeia, segundo uma função que o aproxima bastante do índio da tradição romântica.

Para Cuccagna, um dos pontos afirmados pela Antropofagia é o caráter anti-indianista[9] ao fazer do índio o suporte estético-ideológico havia uma preocupação em afastar o estigma de indianista ou neo-indianista. Contudo, observa que as censuras estéticas contra a natureza europeizante do indianismo romântico, de Gonçalves Dias e José de Alencar, são retomadas pela dialética antropofágica.

A Antropofagia “mirava a um retorno efetivo a aspectos sociais, morais e filosóficos do ameríndio que, desbaratados com a chegada da civilização europeia, deviam ser restaurados para uma transformação mais profunda e natural da sociedade nacional” (CUCCAGNA, 2004, p. 248). Isto é, o encontro entre índio e europeu se dá com choque violento por conta da invasão estranha e reforçado pela resposta antropofágica do indígena.

Já outra vertente do modernismo, o movimento da ANTA, liderado por Plínio Salgado, “recuperava a pré-história indígena em chave pré-figurativa para explicar as íntimas determinações que teriam levado à formação e à unidade sociopolítica do Brasil e a sua consolidação no presente” (CUCCAGNA, 2004, p. 238). Ou seja, conciliar o encontro entre o índio e o europeu.

As duras críticas feitas, por Oswald de Andrade, a Plínio Salgado de ser indianista, demonstrariam também o grau de idealização pelo qual passaria o índio antropofágico, cujas qualidades morais e sociais são amplificadas para realçar o estado de positividade e a superioridade do modelo indígena antes de seu contato deturpador com o Ocidente. “O índio que queremos não é o índio de lata de goiabada, inspirando poemas lusos ao Sr. Gonçalves Dias e romances franceses ao Sr. José de Alencar. Esse índio decorativo e romântico nós damos de presente à Academia de Letras” (COSTA, 1929).

Por um lado, positivamente, Oswald vislumbra no mundo indígena elementos do comunismo, do freudismo e da língua surrealista[10] como forma de neutralizar a atuação do modelo europeu, por outro, isso atestaria justamente um processo de assimilação do índio a tal modelo ocidental. A própria imagem do “bom canibal” seria também um reflexo europeizante da imagem do “bom selvagem” de Rousseau.

Contudo, se a ideia era destacar a figura do índio como símbolo puro de brasilidade, já não faz sentido, uma vez que ele está aculturado e nacionalizado, ou seja, já saiu do seu estado de “pureza” conforme desejava Oswald de Andrade. “E como o tipicamente brasileiro passava pela leitura, avaliação e absorção nacionalizantes de elementos europeus, da mesma maneira o índio e o seu mundo passavam por um processo de abrasileiramento estético-ideológico” (CUCCAGNA, 2004, p.11). Observamos um hibridismo cultural, e dessa forma a ideologia antropofágica, que cultua o índio ideal e simbólico, omite que este está sofrendo influências de outras culturas.

Desse modo, vemos que nem tudo é prerrogativa oswaldiana, na verdade ele se apropria de elementos do “tradicionalismo” os quais tanto criticava. Se o movimento não era exclusivamente indianista, era sim também indianista, não só pela importância que na Antropofagia o mundo indígena exerceria como princípio mediador da formação nacional, mas também, pela retomada ideal e nacionalizante de aspectos que caracterizaram o próprio Indianismo do século XIX.

Oswald queria uma ruptura com o indianismo do romantismo, mas ao escolher o índio como o símbolo da brasilidade terminou por cultuá-lo à maneira de seus antecessores que julgava conservadores e europeizados.

Considerações finais: em defesa do fazer local...

Como uma proposta alternativa anti-colonial, não tratando apenas de independência no caso da cultura, e sim de um fazer próprio, local, com nova vertente autóctone, não copiativa, o Movimento Antropofágico procurava digerir tanto o que estava dentro como o que vinha de fora. A defesa da liberdade de criação e incorporação do vocabulário cotidiano se faz relevante por sua originalidade.

O modo como Oswald categoriza o índio por um viés crítico e como ponto de equilíbrio ideal de um princípio mediador, pelo qual, o intelectual modernista tentou viabilizar o projeto de síntese nacional e na recusa do índio aculturado e cristianizado da realidade histórica do país é muito importante para nossa história. No entanto, a figura do negro, que há pouco tempo tinha deixado a condição de escravo, como também dos imigrantes e as regionalidades têm fundamental importância nessa diversidade étnica-cultural do país são omitidos nessa identidade brasileira que o movimento buscava.

Apesar de todo o processo de modernização, a cidade de São Paulo, palco do movimento, era muito provinciana. Por isso os antropófagos, em sua maioria, usavam pseudônimos. Vale salientar que, Oswald de Andrade, líder do Movimento, só chegou a ser reconhecido postumamente e não por seus contemporâneos.

Observa-se, também, que as condições materiais que os antropófagos tinham e o restante da população e principalmente os índios eram bem diferentes. Os antropófagos pertenciam à elite paulista e herdaram as condições materiais propícias para serem intelectuais. Já a maioria da população e os índios herdaram o abandono e o descaso sendo seu principal objetivo a luta pela sobrevivência.

notas de rodapé

 
[1] De acordo com o portal da prefeitura de São Paulo verificamos que em 1890, a cidade possuía 64.934 habitantes em 1900, 239.820 já em 1920, 579.033. Enquanto que no mesmo período em nível nacional o Brasil apresentava um crescimento de 14.333.915, 17.318.556 e 30.635.605 respectivamente. Histórico Demográfico do Município de São Paulo: população nos anos de levantamento censitário:   MSP,  RMSP,   ESP   E   BR   (1872   a   2010).   Disponível em:<www.prefeitura.sp.gov.br>. Acesso em: 13 fev. 2012.

[2] “Chamei Pau Brasil à tendência mais vigorosamente esboçada nos últimos anos em aproveitar os elementos desprezados da poesia nacional. Poesia de exportação, dizia eu no meu manifesto de há dois anos. Oposta ao espírito e à forma de importação” (ANDRADE, O. Pau Brasil. O Jornal. Rio de Janeiro, 13.6.1925. In: ANDRADE, O. Os dentes do dragão. Organização, introdução e notas Maria Eugenia Boaventura. São Paulo: Globo, 2009, p. 32 – 33).

[3]  Verdeamarelismo  ou  Escola  da Anta  foi  o  grupo  modernista  liderado  por  Plínio  Salgado, Menotti Del Picchia e Cassiano Ricardo, cujo manifesto Nheengaçu Verde-Amarelo foi lançado em 1929 no jornal Correio Paulistano. Em oposição ao Pau-Brasil, defendia um discurso e uma política tradicionalista com base na defesa de uma sociedade estruturada a partir da religião e da família. Na década de 1930, dará vida à doutrina Integralista, influenciada pelo fascismo italiano, que combatia o pensamento de esquerda. (BOAVENTURA, 2009, p.71).

[4] Esse conceito será explorado no decorrer o texto.

[5] A partir dessa referência, adotaremos a sigla RA para citar a Revista de Antropofagia.

[6] O Manifesto Antropófago, escrito por Oswald de Andrade (1890 - 1954), foi  publicado em maio de 1928, no primeiro número da recém-fundada Revista de Antropofagia, veículo de difusão do movimento antropofágico brasileiro. Em linguagem metafórica cheia de aforismos poéticos repletos de humor, o Manifesto torna-se o cerne teórico desse movimento que pretende repensar a questão da dependência cultural no Brasil. In: Enciclopédia Itaú Cultural: artes visuais. Disponível em: <www.itaucultural.org.br>. Acesso em: 13 fev. 2012.

[7] José de Alencar (1829 - 1877), o mais importante prosador do Romantismo brasileiro. Alencar manifesta sua posição a respeito das correntes nacionalistas e delineia o programa de literatura indianista que seguiria nos anos seguintes. In: Enciclopédia Itaú Cultural: Romantismo (segunda geração). Disponível em <www.itaucultural.org.br>. Acesso em: 13 mar. 2012.

[8] Raul Bopp, Antônio de Alcântara Machado, Oswaldo Costa  entre outros.

[9] Na literatura brasileira, o termo Indianismo faz referência à idealização do indígena, por vezes retratado como herói nacional. Foi uma das peculiaridades do Romantismo no Brasil. Para maior aprofundamento no assunto ver OLIVEIRA, V. L. de. Poesia, mito e história no modernismo brasileiro. São Paulo: Editora UNESP; Blumenau: FURB, 2002.

[10] São várias as influências teóricas identificadas no Manifesto: o pensamento revolucionário de Karl Marx (1818 - 1883); a descoberta do inconsciente pela psicanálise e o estudo Totem e Tabu, de Sigmund Freud (1856 - 1939); a liberação do elemento primitivo no homem proposta por alguns escritores da corrente surrealista como André Breton (1896 - 1966); o Manifeste Cannibale escrito por Francis Picabia (1879 - 1953) em 1920; as questões em torno do selvagem discutidas pelos filósofos  Jean-Jacques  Rousseau  (1712  -  1778)  e  Michel  de  Montaigne  (1533  -  1592).  In: Enciclopedia !tau Cultural: artes visuais. Disponível em: <www.itaucultural.org.br> .Acesso em: 13 abr. 2012.

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