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  • Editorial

    Editorial

    por 
    os editores
    resumo 
    A Revista Estudos Culturais chega agora ao seu número três, no mesmo momento em que o Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais da EACH-USP completa seu sexto ano de atuação. O amadurecimento de nossas empreitada é marcado pela amplitude dos temas desta edição da Revista. O campo dos estudos culturais, sempre liberto das amarras disciplinares tradicionais, aparece aqui em várias de suas múltiplas chaves.
  • Sobre os autores

    Sobre os autores

    resumo 
    Eduardo Wanderley Martins, Carlos Velázquez, Damián Cabrera, Madalena Pedroso Aulicino, Daniela Signorini Marcilio, Agnès García Ventura, André Vitor Brandão Kfuri Borba e Mariana Moreira.
  • Mídia: o Novo Totem Dessacralizado

    Mídia: o Novo Totem Dessacralizado

    por 
    Eduardo Wanderley Martins e Carlos Velázquez
    resumo 
    O presente texto tem como objetivo refletir sobre a função de mediação da Mídia para o Sagrado, partindo da concepção de Mídia como novo totem nas sociedades contemporâneas. Sob a metodologia indutivo-analítica de base bibliográfica e documental, explora-se a hipótese de que a mídia, como novo totem nas sociedades midiáticas , cumpre a função organizadora, mas não a função mediadora. A mídia não liga as aspirações e necessidades humanas ao Transcendente, encerrando em si mesma a satisfação dessas aspirações através do fornecimento de bens simbólicos, mas que não têm contato com suas fontes originárias – não há relação com o Sagrado. Dessa forma, a mídia se apresenta nas sociedades midiáticas como um totem dessacralizado - oferece bens de grandes valores universais, mas desprovidos de lastro divino.
    palavras-chave 
  • Literatura paraguay/guaraní - transversalidades

    Literatura paraguay/guaraní - transversalidades

    por 
    Damián Cabrera
    resumo 
    Passando por trabalhos compilatórios dos escritores paraguaios Augusto Roa Bastos e Rubén Bareiro Saguier, e a partir de discursos literários e não literários, analisa-se a ambiguidade fundada na palavra guarani; que designa, indistintamente, uma língua, uma cultura, uma etnia; e que, por metonímia, constitui-se em apelido-gentílico dos paraguaios. Relações entre literatura paraguaia e literatura Guarani são exploradas, desde a perspectiva dos autores citados; tanto conhecedores e divulgadores da mesma, como dois dos poucos paraguaios capazes de ultrapassar um cerco de isolamento cultural graças, em parte, ao exílio político; sob a luz de uma tradição crítica latino-americana hispanizante que, enquanto invisibiliza a literatura paraguaia, contribui com uma mistificação dela, fundada em sua peculiaridade linguística, seja ela real ou inventada.
    palavras-chave 
  • O brincar e o saber de experiência: uma forma de resistir

    O brincar e o saber de experiência: uma forma de resistir

    por 
    Madalena Pedroso Aulicino e Daniela Marcílio
    resumo 
    O brincar é uma atividade livre e séria, possui finalidade autônoma e é um intervalo da vida cotidiana (HUIZINGA, 2005; CAILLOIS, 1990). A criança se desenvolve, adquire experiência, constrói e transmite sua cultura lúdica brincando (WINNICOTT, 1979; BROUGÈRE, 2008). Mas, que brincar é esse promovido e recomendado na atualidade? O objetivo desse artigo é refletir sobre a redução do tempo da infância em prol de uma ideologia da produção e do consumo, que valoriza a informação, o conhecimento e o aprendizado técnico e científico, e reduz o “saber de experiência” (BONDÍA, 2002). Nesse contexto, a retomada do brincar como atividade livre e uma experiência de vida seria uma possibilidade de resistência aos valores vigentes. Constatou-se que os Estudos Culturais como estratégia crítica e política podem contribuir para repensar o brincar hoje.
    palavras-chave 
  • Investigación feminista, historia de las mujeres y mujeres en la historia en los estudios sobre Próximo Oriente Antiguo

    Investigación feminista, historia de las mujeres y mujeres en la historia en los estudios sobre Próximo Oriente Antiguo

    por 
    Agnès García Ventura
    resumo 
    Suele decirse que el estudio del pasado siempre tiene relación con el presente y con el futuro, bien porque presente y futuro se construyen a su imagen y semejanza, bien porque no podemos imaginar un pasado sin los referentes de nuestro presente. Por este motivo, ocuparse de la historia de las mujeres en la Antigüedad y de cómo incluir a las mujeres en la historia, nos permite reflexionar acerca de la situación de las mujeres en el mundo presente en el que vivimos y en el mundo futuro en el que querríamos vivir. En este artículo propongo aproximarnos a este tema con las herramientas críticas de la investigación feminista, ilustrando la propuesta con algunos ejemplos acerca de cómo algunos sesgos pueden afectar al modo en que se aborda el estudio de las vidas de las mujeres en el Próximo Oriente Antiguo.
  • A higienização do século XIX e o "contra corrupção" do século XXI: Similaridades no discurso das elites no Brasil

    A higienização do século XIX e o "contra corrupção" do século XXI: Similaridades no discurso das elites no Brasil

    por 
    André Vitor
    resumo 
    Cada momento histórico é único, mas carrega em si tensões permanentes, num paradoxo entre o novo e o velho, valendo-se de novas experiências sem, entretanto, negar toda a bagagem cultural adquirida. Assim, este trabalho busca relacionar dois momentos distintos da história do Brasil, mas com características em comum: a higienização do início da República e o momento recente, em que estava em jogo o mandato da presidente Dilma Rousseff. Por ser o Brasil um país com pouca mobilidade social e sem alterações substanciais no seu controle político, veremos como os interesses das camadas superiores da sociedade se reproduzem e se perpetuam, no intuito de fazer a população aderir a essa ideologia em favor de seus interesses privados.
    palavras-chave 
  • Resenha do livro Memória Coletiva e Identidade Nacional, Miryam Santos

    Resenha do livro Memória Coletiva e Identidade Nacional, Miryam Santos

    por 
    Mariana Moreira
    resumo 
    A presente resenha aborda o livro “Memória Coletiva e Identidade Nacional”, de autoria de Myrian Sepúlveda dos Santos. Importante pesquisadora de temas como memória, identidade, práticas políticas, culturais e relações raciais, obteve seu título de doutora em Sociologia pela New School for Reserch de Nova Iorque e desenvolveu pesquisas em pós-doutorado no Centro de Estudos Latino-Americanos da University of Cambridge; no Centro de Pesquisa sobre Relações Sociais da Université de Paris V e no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Atualmente é professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e coordena o Grupo de Pesquisa Cultura e Poder, registrado no CNPQ Arte, e o museu Afrodigital. Suas análises abordam teorias de nomes de grande relevância para os Estudos Culturais como Karl Marx, Walter Benjamin, Michel Foucault, Maurice Halbwach, Stuart Hall entre outros.
    palavras-chave 

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  • Temporalidades

    Temporalidades

    por 
    Luiz Menna-Barreto e Mario Pedrazzoli
    resumo 
    Esta edição da Revista Estudos Culturais foi dedicada a estudos sobre o tempo, tema recorrente em diversas áreas do conhecimento e que vem adquirindo relevância crescente num mundo globalizado no qual as pessoas acabam se expondo a desafios inéditos até meados do século XX. Atravessamos fusos horários, acompanhamos bolsas de valores em Tóquio e Nova York e assistimos a jogos que ocorrem do lado oposto do planeta, numa sucessão de eventos que acontecem em tempos próprios e que nem sempre coincidem com os tempos de cada indivíduo. Surge nesse contexto certa tensão entre nossas percepções da passagem do tempo, aquela interna que dialoga com nosso sono ou fome e a outra externa, imposta pelos vários relógios aos quais tentamos obedecer. Dessa tensão emergem reflexões que trazemos aos leitores, reflexões inspiradas em diferentes olhares que vão desde aspectos filosóficos e sociológicos a aspectos biológicos.
  • Sobre os autores

    Sobre os autores

    resumo 
    Luiz Menna-Barreto, Mario Pedrazzoli, Robert Levine, Muara Kizzi Figueiredo, Rafael H. Silveira, Rafael Chequer Bauer, Alexandre Panosso Neto e Luiz Gonzaga Godoi Trigo escrevem no número dois da Revista de Estudos Culturais.
  • Ordem e progresso, aceleração e alienação

    Ordem e progresso, aceleração e alienação

    por 
    Rafael H. Silveira
    resumo 
    Como diversos exemplos dados em Aceleração e alienação [1] [1] ROSA, Hartmut. Beschleunigung und Entfremdung: Entwurf einer kritischen Theorie spätmoderner Zeitlichkeit. Traduzido do inglês para o alemão por Robin Celikates. Berlim: Suhrkamp Verlag, 2013. confirmam, a condição de especialista no campo da aceleração social muitas vezes não exime o próprio autor da ação dos fenômenos por ele analisados – sobretudo por se tratar de uma das personalidades acadêmicas mais conhecidas, citadas e requisitadas na imprensa alemã atualmente. Como minha resenha da análise de Hartmut Rosa mostra, a obra está longe de ser die Entdeckung der Langsamkeit ou um éloge de la lenteur, como interpretado por alguns. No diálogo, conduzido em 23/10/2014 na cidade de Jena, Alemanha, originalmente em alemão, transcrito, editado e traduzido para o português por Rafael H. Silveira, são abordados pontos que complementam o entendimento da Teoria da Aceleração através de uma perspectiva voltada para a realidade brasileira.
  • Tempo e bem estar

    Tempo e bem estar

    por 
    Robert Levine
    resumo 
    Neste artigo examino o impacto da experiência temporal – o emprego do tempo, concepções do tempo e normas temporais - sobre a felicidade e o bem estar; sugiro políticas públicas voltadas à ampliação dessa experiência. Inicio com uma revisão da literatura relativa às interrelações entre o tempo, dinheiro e felicidade. Em segundo lugar, reviso dados e questões em torno dos horários de trabalho e não trabalho ao redor do mundo. Em terceiro lugar, descrevo numa perspectiva mais ampla as questões temporal que deveriam ser levadas em consideração nas decisões de políticas públicas, por exemplo, medidas de relógio versus eventos, enfoques monocrônicos versus policrônicos, definições de tempo perdido, ritmo de vida e orientação temporal. Concluo com sugestões para a elaboração de políticas do emprego do tempo voltadas para aumentar a felicidade individual e coletiva. Trata-se de um truísmo virtual o modo como empregamos nosso tempo se expressa no modo como vivemos nossas vidas. Nosso tempo é o bem mais valioso do qual dispomos. Boa parte desse tempo, no entanto, é controlado por outros, desde nossos empregadores até nossos familiares mais próximos. Também está claro que existem diferenças profundas – individuais, sócio econômicas, culturais e nacionais – no grau de controle que indivíduos exercem sobre seus próprios tempos (ver p. exemplo LEVINE, 1997; LEE, et al., 2007). Pode ser argumentado que políticas públicas são necessárias para proteger os “direitos temporais” dos indivíduos, particularmente aqueles mais vulneráveis à exploração. Este artigo foi motivado por um projeto de largo espectro do qual tive a oportunidade de participar. O projeto começou na primavera de 2012 na sequência de uma resolução da ONU, aprovada por unanimidade em sua Assembleia Geral, na qual “felicidade” foi incluída na agenda global. O Butão foi convidado a receber um grupo interdisciplinar de “experts” internacionais com a tarefa de elaborar recomendações para incentivar a busca da felicidade no planeta; mais especificamente desenvolver um “novo paradigma para o desenvolvimento mundial”. O Butão é um pequeno país pobre, cercado de montanhas na região do Himalaia, foi escolhido para essa tarefa em função do pioneirismo de seu projeto de “Felicidade Nacional Bruta” - FNB (Gross National Happiness - GNH). “Progresso” na definição dos autores desse projeto, “deveria ser visto não apenas através das lentes da economia como também a partir de perspectivas espirituais, sociais, culturais e ecológicas”. Felicidade e desenvolvimento, em outras palavras, dependem em mais fatores do que o crescimento e acumulação de capital. Inglaterra, Canadá e outros países e organizações de dimensões nacionais seguiram na mesma direção do Butão, estabelecendo medidas de FNB (LEVINE, 2013). Um dos domínios centrais do índice de FNB do Butão é “emprego do tempo” que correspondeu à minha participação no relatório do grupo de estudo. Este artigo está bastante apoiado naquele relatório e nas inferências que o projeto me proporcionou. Discuto quatro conjuntos de temas: I. As interrelações entre tome, dinheiro e felicidade. Máxima importância, qual a relevância do emprego do tempo com o bem estar e a felicidade? II. Emprego do tempo: questão dos horários e políticas de organização do trabalho. III. Outors fatores tempais que devem ser considerados ao formularo políticas de promoção de felicidade.. IV. Sugestões para elaboração de políticas: a chamada para uma “Lei de Direitos Temporais”.
  • A ilusão dos relógios: uma ameaça à saúde

    A ilusão dos relógios: uma ameaça à saúde

    por 
    Mario Pedrazzoli
    resumo 
    A mecanicidade ou digitalidade dos relógios representa a imutabilidade da duração de frações de tempo. A contagem das 24h de um dia teve como referência, a princípio, as pistas ambientais associadas às condições do dia e da noite que são diferentes em diferentes locais da terra e portanto mutáveis. A emergência de uma sub-área da Biologia, a Cronobiologia, em meados do século XX permitiu a interpretação de que a apreensão do tempo de um dia como regularidade mecânica aliena os seres humanos da percepção da temporalidade diária como integração entre temporalidade ambiental e temporalidade biológica. Pretendo demonstrar que esse equívoco perceptual da duração do tempo de um dia pode ter como consequência uma desorganização temporal fisiológica que é a origem ou está associada a origem de muitas doenças modernas.
  • Os horários fora de lugar – ritmos biológicos e literatura

    Os horários fora de lugar – ritmos biológicos e literatura

    por 
    Muara Kizzy Figueiredo
    resumo 
    Este trabalho analisa a relação existente entre personagens e ambiente e objetiva investigar como, supostamente, se deu a implantação no Brasil do século XIX dos ritmos sociais europeus, tendo em vista os ritmos biológicos da população brasileira (em termos coletivos) – adaptada ao ambiente tropical. Para tal estudo, foram analisados alguns textos literários do período (em especial a obra de Machado de Assis e Eça de Queirós) - visando identificar menções aos horários de sono, refeições, atividades sociais e aspectos do sono; bem como a leitura de autores contemporâneos que discutem a construção de identidades nacionais – em especial no Brasil – e ainda; autores que investigam a temática do tempo – seja em termos cronológicos, psicológicos e biológicos.
    palavras-chave 
  • Slow movement: reação ao descompasso entre ritmos sociais e biológicos

    Slow movement: reação ao descompasso entre ritmos sociais e biológicos

    por 
    Rafael Chequer Bauer, Alexandre Panosso Netto e Luiz Gonzaga Godoi Trigo
    resumo 
    Este artigo discute o descompasso entre os ritmos biológicos e os ritmos sociais emergentes a partir da Revolução Industrial. Para tal, são apresentados indícios de mudanças rítmicas nas últimas décadas, acarretando um processo contínuo e profundo de aceleração e mecanização sociocultural, predominante nas estruturas societárias capitalistas. Em seguida, discute-se a relação entre ritmos sociais e ritmos biológicos, com a contribuição conceitual advinda da Cronobiologia. Por fim, destaca-se o processo de surgimento e consolidação do Slow Movement nas últimas décadas, tornando-se mais um indício da desarticulação temporal vivenciada nos dias atuais.
  • Os tempos da vida

    Os tempos da vida

    por 
    Luiz Menna-Barreto
    resumo 
    O tema do tempo tem atraído bastante atenção no ambiente acadêmico contemporâneo. Apresentarei uma abordagem na qual são associados os conceitos de condicionamento reflexo clássico com a cronobiologia, área na qual a dimensão temporal da matéria viva é explorada. O conceito de antecipação é proposto como elo central dessa associação. Discuto a seguir os níveis de determinação que podem ser propostos a partir da observação de fenômenos temporais nos organismos. Concluo com as noções de desafios e armadilhas temporais que parecem caracterizar fortemente os dilemas humanos num mundo globalizado, conduzindo a diferentes processos de adaptação resultantes desses desafios e armadilhas.
  • Resenha do livro Aceleração e alienação: Esboço de uma teoria crítica da temporalidade na Modernidade tardia, Harmut Rosa

    Resenha do livro Aceleração e alienação: Esboço de uma teoria crítica da temporalidade na Modernidade tardia, Harmut Rosa

    por 
    Rafael H. Silveira
    resumo 
    Em Aceleração e alienação: Esboço de uma teoria crítica da temporalidade na Modernidade tardia, Hartmut Rosa recapitula resumidamente e amplia sua Teoria da Aceleração Social. A ampliação da teoria se dá em primeiro lugar através da análise de elementos desaceleradores da tendência aceleratória e, em seguida, da análise das consequências da aceleração para a Teoria Crítica social atual, cujos questionamentos levantados e respostas dadas até o presente momento não apresentariam uma solução para a perda da credibilidade do projeto da Modernidade, uma vez que a aceleração social teria sucumbido e instrumentalizado a possibilidade de autonomia prometida. Partindo da busca de uma resposta à questão de o que seria uma vida plena, Rosa retraça, assim, o contexto do surgimento de diferentes categorias de alienação, retratando em sua teoria uma tendência social crescente extremamente relevante e em crescimento na era moderna.
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Marcos fundamentais da Literatura Periférica em São Paulo

por 
Antonio Eleison Leite
resumo 
A literatura da periferia de São Paulo se divide em dois períodos históricos: a) Literatura Marginal, de 2000 a 2005 e b) Literatura Periférica, a partir de 2005 até os dias atuais. A primeira fase teve como marco inaugural a publicação do livro Capão Pecado, de Ferréz, no ano 2000, obra muito influenciada pela cultura hip hop, especialmente o RAP. Este escritor foi o principal nome dessa fase, sendo também seu maior articulador, ao coordenar inúmeras coletâneas literárias que proporcionaram o surgimento de dezenas de autores. O segundo período é marcado pela ascensão dos saraus, principalmente do Sarau da Cooperifa. Este Coletivo publicou sua antologia em 2005 e estimulou diversos saraus a fazerem o mesmo. Viabilizados, em boa parte, por políticas públicas, perto de 200 livros, coletivos e individuais, foram lançados desde então, configurando um vigoroso movimento cultural. Entretanto, passados 12 anos, a rubrica periférica e/ou marginal se mostra insuficiente para identificar essa prática literária. Este artigo apresenta duas hipóteses para superação desse problema. A primeira é contextualizar a literatura periférica como uma dimensão da cultura popular urbana, ampliando assim o seu alcance como expressão cultural, sem prejuízo da sua identificação de origem. A segunda é de ordem estética e implica na afirmação da busca da qualidade como um imperativo da criação. Esse desafio, porém, requer, por parte dos escritores, uma disposição para se submeterem à crítica, ao mesmo tempo em que torna-se necessário um novo paradigma crítico que possa responder à especificidade dessa literatura.
 
dossiê sobre cultura popular urbana

Funk ostentação em São Paulo: imaginação, consumo e novas tecnologias da informação e da comunicação

por 
Alexandre Barbosa Pereira
resumo 

O artigo aborda a configuração recente de um movimento musical, protagonizado principalmente por jovens de origem pobre, em São Paulo, o funk ostentação. A partir da pesquisa em casas noturnas e da observação de videoclipes na internet, explora-se a importância das referências a marcas de diferentes produtos e bens de valor elevado e a imagem como componente fundamental para a apresentação e divulgação desse estilo musical. Nesse circuito funk, a proposição de Arjun Appadurai sobre a centralidade do deslocamento pelas migrações e novas tecnologias da comunicação mostra-se como um caminho importante para se refletir sobre esse funk a partir da ideia de imaginação.

abstract 

The article discusses the recent setting of a musical movement, played mainly by young people from poor backgrounds in São Paulo, the ostentation funk. Through search in nightclubs and watching video clips on the Internet, explores the importance of references to brands of different products and goods of high value and the image as a key component for the presentation and dissemination of this musical style. In this circuit funk, Arjun Appadurai's proposition about the centrality of migration and displacement by new communication technologies shows up as an important way to think about this funk from the idea of imagination.

 

 

 

 

Não é imaginação,
É a realidade,
Já virou passado
Miséria, necessidade
(Mc Boy do Charmes)

Do proibidão

“Rouba carro, rouba moto, bandido não anda a pé”, esse era o refrão de uma das músicas que ouvia tocar alto, em salas de aula, a partir dos aparelhos de telefone celular dos estudantes de escolas públicas do ensino médio noturno em bairros da periferia de São Paulo. O funk carioca era o gênero musical predileto, principalmente no estilo chamado proibidão por falar da criminalidade e, muitas vezes, exaltar facções criminosas como o Comando Vermelho. Essa, aliás, era uma das principais reclamações dos gestores e dos professores das escolas que acompanhei em pesquisa durante os anos de 2007 e 2010: a presença dos telefones celulares durante as aulas e o que os estudantes faziam com eles para desestabilizar a dinâmica escolar (PEREIRA, 2010). Não apenas as ligações, mas principalmente as músicas, as fotografias, os vídeos e todos os recursos que tais aparelhos poderiam disponibilizar. Desde então, tanto a relação com os equipamentos tecnológicos, como a grande difusão do funk carioca em São Paulo, particularmente entre jovens moradores de bairros periféricos, tornaram-se os principais vilões da manutenção da ordem, tão cara aos estabelecimentos de ensino. Apesar de partir das escolas, essa pesquisa não se restringiu a elas, mas se voltou também para o seu entorno, para os bairros onde se inseriam, com o objetivo de apreender como se desenvolviam as relações de sociabilidade dos jovens nas suas localidades de moradia e estudo. Nesse sentido, acompanhei também festas realizadas nas ruas, cuja música, o funk, era veiculada pelos equipamentos de som dos carros. Tais eventos eram chamados de pancadões, em referência à forte batida da música funk.

Meu interesse pelo funk carioca em São Paulo inicia-se, portanto, com essa pesquisa para o meu doutorado, defendido em 2010, em Antropologia Social, sobre práticas culturais juvenis em bairros periféricos, a partir das escolas. Além disso, desde então, o funk carioca propagou-se enormemente por São Paulo e o meu desejo por pesquisar as práticas que eram agenciadas em torno dele cresceu na mesma proporção. Por um lado, essa difusão despertou a atenção da mídia, muitas vezes com enfoques criminalizantes e moralizantes, acusando os pancadões de serem eventos promovidos por criminosos e marcados pelo consumo de drogas e por sexo ou práticas consideradas libidinosas. Por outro, muitos moradores começaram a reclamar do barulho e do fechamento das ruas [1] [1] Reclamações sobre os pancadões, aliás, são constantes em reuniões dos Conselhos Comunitários de Segurança (CONSEGs) pela cidade. Esses Conselhos Comunitários de Segurança fazem reuniões com agentes da segurança pública – delegados, e responsáveis por policiamento local – e moradores dos bairros onde se instalam as delegacias responsáveis pela segurança da área. Acompanhei muitas dessas reclamações em reuniões do CONSEG Cidade Ademar entre os anos de 2007 e 2010.. A partir daí surgiu então a chamada Operação Pancadão, uma ação policial cuja proposta principal era coibir a realização dessas festas de ruas, com dois objetivos principais de combate: o barulho e a presença de menores consumindo bebidas alcoólicas em tais eventos. Nesse ano de 2013, um vereador da cidade de São Paulo, ex-policial, integrante da bancada da bala[2] [2] Como é conhecido o grupo de ex-policiais com mandato no legislativo municipal em São Paulo., apresentou projeto de lei proibindo a realização de festas funk ou qualquer outro tipo de festa nos espaços públicos da cidade.

A partir do início do segundo semestre de 2012, comecei uma pesquisa mais focalizada especificamente sobre as práticas de lazer e redes de sociabilidade articuladas em torno do funk em São Paulo. Esse artigo que apresento é, portanto, o resultado dessa primeira aproximação etnográfica ao tema e, ao mesmo tempo, uma tentativa inicial de produzir uma reflexão mais aprofundada sobre esse fenômeno no estado de São Paulo, mais especificamente na capital e na Baixada Santista. Ademais, retomo aqui também parte da discussão que apresentei sobre o funk ostentação no Seminário Estudos Culturais e a Cultura Popular Urbana, realizado em novembro de 2012 na EACH/USP[3] [3] Nas primeiras incursões junto ao funk em São Paulo, pude contar com um parceiro de campo, Leonardo Cardoso, que realiza pesquisa sobre as controvérsias do som e dos ruídos em São Paulo para sua tese de doutorado pela Universidade do Texas. Ele, interessado em compreender como o funk insere-se na polêmica das discussões sobre poluição sonora e as políticas de silêncio urbano em São Paulo e eu, em refletir sobre o funk como produção cultural dissonante e dispositivo de sociabilidade juvenil em São Paulo..

A ostentação

Embora tenha observado alguns pancadões de rua durante minha pesquisa de doutorado, essa outra pesquisa sobre o funk, como já afirmado, iniciou-se num momento em que houve uma maior repressão às festas de rua. Com isso, tornou-se muito mais difícil encontrar os pancadões, seja porque eles não aconteciam devido à repressão policial – que dispersava, com bombas de gás lacrimogêneo e sprays de pimenta, a multidão que se aglomerava para dançar em torno dos carros que tocavam o som – seja também porque as poucas festas que aconteciam passaram a não ter a mesma periodicidade de antes, nem a divulgar datas, horários e locais de suas realizações. Nesse contexto, adentrar as casas noturnas que tocavam funk na cidade de São Paulo revelou-se a estratégia principal de aproximação inicial. A pesquisa começou a partir da observação de uma casa noturna que toca funk na zona sul de São Paulo, região de Santo Amaro, a Nitronight [4] [4] Disponível em: www.nitronight.com.br. Acesso em: 28 mar. 2013.. Posteriormente, também fiz incursões à Conexão Urbana [5] [5] Disponível em: www.conexaourbana.com/. Acesso em: 28 mar. 2013., em Cidade Tiradentes. Nesses locais, além das músicas tocadas pelos DJs, ocorrem também apresentações ao vivo de Mcs de Funk.

A primeira ida à casa noturna foi uma experiência bastante reveladora do poder de mobilização do funk na cidade. Num sábado à noite, o lugar estava cheio, fila para entrar e anúncio de que haveria o blackout – um determinado período da festa em que a casa ficaria totalmente às escuras, iluminada apenas pelas pulseiras, distribuídas na entrada, nas cores verde e vermelha, indicando, respectivamente, disponibilidade ou não para “ficar” ou “beijar” outras pessoas. Nessa balada, como também são chamados tais lugares, destacava-se a circulação de rapazes com bebidas. Aqueles que comprassem as bebidas mais caras, como garrafas de uísque acompanhadas de energéticos, carregavam-nas em baldes de plástico com gelo e com artefatos produtores de faíscas presos à ponta das garrafas, chamando a atenção para os compradores. O som da casa era extremamente alto e houve momentos em que se tocaram outros gêneros musicais como axé, pagode e sertanejo universitário[6][6] Para uma reflexão sobre o uso do designativo “universitário” em alguns gêneros musicais, ver Daniela Alfonsi (2007), em pesquisa sobre o forró universitário em São Paulo., entretanto era o funk a música mais tocada e a que mais empolgava o público, sendo o principal motivo de sua presença.

Empreender pesquisa de campo em locais como esse envolve uma relação bastante complexa entre o olhar e o escutar. O ambiente escuro e lotado permite ver apenas o que acontece mais próximo ou o que é apresentado no palco. O som altíssimo, por sua vez, não nos permite ouvir com muita clareza o que as pessoas conversam ao nosso lado. Enfim, é um lugar onde, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que se vê e ouve muito, vê e ouve-se muito pouco. Contudo era possível contemplar as danças. As meninas eram as que mais dançavam, requebrando os quadris e, vez ou outra, descendo até o chão flexionando os joelhos com os quadris empinados, ou com um rapaz segurando-as pela cintura por trás. Podia-se perceber também nessa casa noturna de Santo Amaro o clima de paquera, com os meninos andando em busca de meninas desacompanhadas. Havia certo respeito às meninas que estavam acompanhadas por rapazes, não sendo abordadas pelos outros meninos. Certa vez, estava perto de algumas meninas dançando e prestei atenção na abordagem de um menino. Ele, quando notou o meu olhar atento, voltou-se assustado para mim pedindo desculpas e perguntando se as meninas estavam comigo. Fato que logo neguei para seu alívio.

Se podia pouco ouvir do que as pessoas conversavam, comecei a prestar mais atenção às letras das músicas que tocavam para anotar e, posteriormente, buscá-las na internet. Comecei a encontrar os seus autores e também certas regularidades no que era cantado. Cheguei então às primeiras músicas e a descoberta de recorrências nas abordagens desse funk tocado nas casas noturnas de São Paulo. “Vida é ter um Hyundai e uma Hornet, dez mil pra gastar, Rolex, Juliet. Melhores kits, vários investimentos. Ai como é bom ser o top do momento”, música do Mc Danado, por exemplo, cita marcas e modelos de carro, moto, relógio, óculos escuros, entre outras. A expressão kit é recorrente em muitas letras de funk e faz referência às camisetas de marcas específicas e a acessórios de grife, como bonés e óculos escuros. No clipe dessa música, disponível no Youtube[7] [7] Site de compartilhamento de vídeos na internet., Mc Danado chega de moto a uma mansão. Dentro dela, muitos carros, motos e mulheres de biquíni bebendo espumante à beira da piscina[8][8] Mc Danado, Top do Momento. Disponível em www.youtube.com/watch?v=PlSt7KScE60. Acesso em: 24 mar. 2013.. Em outra música, Mc Rodolfinho canta: “Bolso esquerdo só tem peixe e o direito tá cheio de onça. Ai meu Deus como é bom ser vida loka”[9] [9]Mc Rodolfinho, Como é bom ser vida loka. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=p0oFWgwUqHU. Acesso em: 24 mar.2013., em clipe no qual aparece segurando uma garrafa de uísque dentro de uma limusine com mulheres dançando em sua volta. Rodolfinho atira notas de cem (os peixes) e cinquenta (as onças)[10] [10] Alusão às figuras impressas na parte posterior das notas de 100 e 50 Reais.. Mc Boy do Charmes, funkeiro da Baixada Santista, por sua vez, canta: “Onde eu chego eu paro tudo, a mulherada entra em pane, meu cordão é um absurdo, meu perfume é da Armani”[11] [11] Mc Boy do Charmes, Onde eu chego eu paro tudo. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=M095niM05iw. Acesso em: 24 mar.2013. Esse videoclipe, particularmente, já ultrapassou 22 milhões de visualizações no Youtube.. Já a Mc Byana, cantora carioca de funk, tem uma música de bastante sucesso entre as meninas nas pistas de dança: “Quem foi que disse que ser mercenária e gostar de dinheiro é ser piranha? Muito prazer eu sou Byana. Joga o dedo pro alto a mulher que gosta de grana” [12] [12] Mc Byana, Luxúria. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=xLKaRaelzpg. Acesso em: 24 mar.2013.. Nesse momento da música, as meninas levantam o dedo indicador girando-o no alto, como na performance do videoclipe dessa música no Youtube.

Não foi fácil, num primeiro momento, entender o que diziam as músicas, foi preciso pesquisar mais detalhadamente em sites de busca para entender que Hornet e Hayabusa[13] [13] Mc Dede, Rolê de Hayabusa. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=cB-GCEBnDWQ. Acesso em: 28 mar.2013. eram modelos de motocicletas, Juliet de óculos escuros e Ed Hardy uma marca de roupas, cuja estética traz elementos das tatuagens do próprio Ed Hardy, tatuador da Califórnia. Após, entender o que era a Ed Hardy, comecei, inclusive, a reconhecer, nas festas, a estética característica nas camisetas dos meninos e nos vestidos justos e curtos das meninas. Passei a notar, aliás, a forte presença de vestimentas dessa marca nas baladas de funk e entre os seus admiradores de uma maneira geral. As letras de funk que eu ouvia exaltavam, portanto, grifes, marcas, modelos de automóveis e consumo de bebidas relativamente caras como espumantes Chandon, Uísques Red e Black Label, Tequilas, Vodkas Absolut, entre outras. Na casa noturna que acompanhei na região de Santo Amaro, havia inclusive dias dedicados a marcas específicas em que, quem comparecesse vestido com algum item da Ed Hardy, por exemplo, pagaria um menor valor para entrar na casa e/ou teria acesso livre aos camarotes. Os camarotes são espaços mais reservados, geralmente em piso elevado nas laterais ou no fundo da casa, com vista para a pista de dança e o palco, possui valor mais caro de ingresso e conta com acesso controlado por seguranças.

Comecei então a perceber que se vislumbravam ali muitas novidades nesse funk carioca tocado nas casas noturnas dedicadas a esse gênero musical em São Paulo. A primeira delas, é que se tratava agora de um funk não mais produzido por cariocas que vinham apresentar-se em São Paulo, mas por paulistas muito jovens. Mc Rodolfinho, por exemplo, tinha menos de 18 anos quando compôs seu maior sucesso, a música: Como é bom ser vida loka. A segunda novidade: a diminuição radical das referências diretas à criminalidade, por um lado, e, por outro, a adoção constante e intensa da temática do consumo e das marcas. Esse aspecto, aliás, é o que iria dar nome a esse movimento: funk ostentação. Por fim, outra característica importante: o uso das novas tecnologias e do audiovisual como meio de produção e difusão das criações musicais. Com isso, além de uma rápida e intensa divulgação, muitos dos videoclipes de funk ostentação já passaram dos dez milhões de exibições, há uma preocupação muito grande com a produção da imagem. Eles não apenas cantam os bens de consumo e marcas, mas também os exibem nos videoclipes.

Criaram, assim, um fenômeno importante, o surgimento de profissionais especializados na produção de videoclipes para o gênero funk ostentação. É o caso da Funk TV, empresa de audiovisual do distrito de Cidade Tiradentes, extremo leste da cidade de São Paulo[14] [14] Disponível em: funk.tv.br. Acesso em: 28 mar.2013.. E, principalmente, é o caso daquele que se tornou a maior referência em direção e produção de clipes de funk ostentação: Kondzilla, nome artístico de Konrad Dantas, então com 24 anos. Os clipes dirigidos por Kondzilla são vistos como primeiro passo para o sucesso, por isso ele é bastante procurado. Inspirado na estética dos videoclipes de raps estadunidenses, principalmente os do estilo gangsta, conforme contou o próprio, ele se tornou, talvez, o principal artista do funk ostentação paulista. Todos os seus videoclipes são assinados no início da sua exibição. Enquanto, escrevia esse artigo ele já tinha contabilizado a direção de mais de 60 clipes de funk ostentação, ultrapassando, no conjunto de sua obra, mais de 100 milhões de visualizações no Youtube[15] [15] Disponível em: kondzilla.com. Acesso em: 28 mar.2013. Embora Kondzilla também tenha dirigido videoclipes de outros estilos, especializou-se de fato e tornou-se bastante reconhecido pelo funk ostentação. Em seu site, afirma que “3 dos 10 vídeos mais assistidos no Youtube do Brasil em 2012 foram dirigidos por KondZilla”..

Esse fenômeno do sucesso dos videoclipes de funk ostentação no Youtube tem influenciado, inclusive, a própria composição das músicas. Acompanhei a gravação de um videoclipe de uma música do Mc Gui, pela Funk TV, com a presença de vários itens de luxo, como um iate na cidade do Guarujá, na Baixada Santista, e dois carros importados, uma Ferrari e um Camaro. Durante as filmagens, o irmão do MC, contou que a música Ela quer, além da referência à Ferrari e ao Camaro, também cita um carro Lamborghini em seu refrão: “Ela quer, ela quer, meu camaro e meu iate. Ela quer, ela quer, minha Lamborghini e minha Ferrari”[16] [16] Mc Gui, Ela quer. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=QLK6ZJW-oF8. Acesso em: 24 mar.2013. Mc Gui tinha 14 anos quando da gravação desse clipe.. Entretanto a Laborghini não pôde estar na gravação do vídeo porque o dono da concessionária de carros importados no bairro do Tatuapé [17] [17] Bairro que, nos últimos anos, tem sido alvo de intensa especulação imobiliária, com a elevação do valor do metro quadrado, a construção de inúmeros prédios de luxo e sua consequente transformação em uma localidade de classe média alta., na zona leste de São Paulo, amigo do pai do Mc, não conseguiu trazer o automóvel da cidade de Itu para a capital paulista. O irmão do Mc ressaltou que se o Mc Gui soubesse disso, teria retirado a referência a esse modelo de automóvel da música. Isso é revelador de como nesse estilo musical a imagem e a exibição têm papel fundamental. Muitas das letras das músicas já são produzidas tendo em vista a gravação dos videoclipes para se tentar uma divulgação rápida e intensa. Em outras palavras, canta-se o que se quer mostrar.

Imaginação e fantasia no funk ostentação

Mc Boy do Charmes, cujo nome artístico faz referência ao bairro onde mora, a Vila Charmes em São Vicente, município da Baixada Santista no litoral paulista, em duas de suas músicas usa o mote da imaginação nas letras para de, certa forma, descrever ou apresentar o desejo por bens de consumo de alto valor e a necessidade de ostentá-los. Em uma delas, Onde eu chego eu paro tudo, uma voz grave abre a música: “A imaginação é só pra quem corre atrás”. Em outra, Nóis de Nave[18][18] Mc Boy do Charmes, Nóis de Nave. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=ckHt1qD_TDs. Acesso em: 24 mar.2013. A palavra nave faz referência a carros potentes e caros. , Mc Boy do Charmes aprofunda ainda mais a importância da dimensão da imaginação. Ele inicia essa música cantando: “Imaginei. Sorrindo eu tô na favela. Sou Robin Hood, eu mato e morro por ela. Sei que a inveja continua rodeando a gente. Sou sofredor, mas tô voltando aí da chapa quente”. E logo em seguida, após dizer que conseguiu comprar uma linda moto modelo XT, ele prossegue: “Vou imaginando e quem imagina levanta a mão. Por ser humilde eu tenho um sonho e não é em vão. E vamos imaginando nós de Porsche ou de Mercedes Bens, de Captiva, BMW ou de 1100” (nesse momento da música há o som incidental do ronco de uma motocicleta de 1100 cilindradas). O clipe mostra-o na Vila Charmes, bairro pobre onde mora, cercado por meninos mais novos, dançando ao seu lado ou brincando de bolinha de gude. Logo a seguir, o vídeo corta para ele entrando num beco em sua moto e encontrando os meninos que ali moram. Ele para, cumprimenta-os e distribui autógrafos. Ao falar da imaginação, Mc Boy do Charmes aparece sentado com os amigos conversando sobre carros e imaginando-se neles. Quando passa uma comitiva com os carros e a moto citados na música, todos param e apontam admirados, inclusive o próprio Mc Boy do Charmes.

Desse modo, ele nos demonstra como esse mundo de riqueza e ostentação, apresentado nas letras das músicas e nos vídeos exibidos no Youtube, parte muito mais de uma realidade imaginada do que uma realidade de riqueza material de fato. Nos videoclipes, por exemplo, grande parte dos automóveis exibidos são emprestados ou alugados. O mesmo acontece com mansões, iates e mesmo aviões que aparecem nos vídeos. Ainda que alguns desses Mcs de funk ostentação em São Paulo já façam considerável sucesso no circuito de casas noturnas da cidade, realizando mais de três shows por noite de quinta a domingo, ganhando cachês que podem ultrapassar os cinco mil Reais por cada apresentação, e consigam, assim, comprar alguns dos caros carros por eles cantados, a origem desses jovens não tem nada de riqueza e ostentação. Em sua maioria, são jovens muito pobres ou no máximo de estratos mais baixos de certa classe média.

Nos videoclipes que gravam e carregam no Youtube, eles se apresentam como personagens ricos (ou do modo como imaginam o que seria ser rico), que se divertem exibindo produtos caros e notas graúdas de dinheiro, às vezes jogando-as para o alto. De certo modo, tentam transformar a imaginação em realidade, como outro trecho da música Onde eu chego eu paro tudo de Mc Boy do Charmes, citado aqui como epígrafe. Um dos produtores de videoclipes, Montanha da Funk TV, afirmou-me, para explicar o que seria essa tal ostentação, que, assim como as novelas da Rede Globo mostravam frequentemente um mundo de luxo que não existia para a maioria da população brasileira, os funkeiros paulistas criavam também um mundo de luxo no qual eles poderiam imaginar-se como parte e mesmo exibir-se como protagonistas.

Ao discutir a centralidade que o deslocamento, nos últimos anos, tem assumido no mundo, Arjun Appadurai (1997), antropólogo indiano, aponta para a importância nesse processo da intensificação das migrações e do desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação. Afirma Appadurai que esses dois elementos atuariam de maneira fundamental sobre a constituição das subjetividades modernas. Assim, a imaginação assumiria um papel fundamental, pois, mesmo que não se desloquem fisicamente, as pessoas, pelos meios de comunicação podem, cada vez mais, imaginar-se em outros lugares. As tecnologias da comunicação fornecem ferramentas para que se possa imaginar-se como um projeto social em curso. A imaginação, afirma esse autor, saiu do âmbito expressivo da arte para a vida cotidiana. A obra da imaginação, segundo ele, não é necessariamente totalmente emancipadora, nem inteiramente disciplinadora. Appadurai ainda faz uma distinção entre as ideias de imaginação e fantasia. A primeira teria um caráter de projeto e de ações efetivas e mesmo coletivas, já a segunda, a fantasia, não teria esse caráter projetivo e de ação, sendo mais individualista, autotélica e narcísica.

Importante destacar como essa dimensão da imaginação atrelada às novas tecnologias da comunicação mostra-se fundamental para a compreensão desse funk ostentação. Nesse caso, o imaginar-se não implica apenas o estar em outro lugar ou país, mas o imaginar-se em outra classe social, em outro contexto sociocultural, em outra realidade material, em outro mundo do consumo. As duas dimensões da dualidade proposta por Appadurai, imaginação e fantasia, estão presentes de forma bastante associada nas práticas e relações que os protagonistas do funk ostentação estabelecem. Na cena funk – nos videoclipes, nas músicas, no circuito das casas noturnas e dos produtores – percebe-se, ao mesmo tempo, uma dimensão mais atrelada ao consumo e ao hedonismo e outra ligada a um projeto de vida, de ascensão social e mesmo de reversão de estigmas ou de afirmação de orgulho por pertencer a certa condição periférica ou marginal. A relação com a origem social pobre, por exemplo, é constantemente destacada pelos jovens. Mc Boy do Charmes, além de gravar o clipe da música Nóis de Nave no bairro onde mora, apresenta-se para uma entrevista para um documentário sobre o funk ostentação, em uma ponte de madeira sobre um córrego, tendo ao fundo o seu carro do modelo Captiva cantado em uma de suas músicas[19][19] Funk Ostentação, O Filme. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=5V3ZK6jAuNI. Acesso em: 27 mar.2013..

Apesar de não estar presente massivamente, pelo menos no ano de 2012, na grande mídia tradicional, entendida aqui principalmente por rádio e televisão, o funk ostentação conseguiu articular-se de maneira bastante produtiva e criativa com as novas tecnologias. A produção muito bem feita dos videoclipes por profissionais com certa especialização, como o Kondzilla e a Funk TV, a gestão de certos empresários que vendem um conjunto de shows com vários Mcs para garantir uma noite inteira de apresentações nas casas noturnas, além da própria entrada nesse circuito dessas casas garantiram, de certa maneira, retornos sociais e financeiros e uma visibilidade de massa para esse gênero musical. Medida, principalmente, pelas exibições dos vídeos no Youtube e pelo público nas casas noturnas. Na Conexão Urbana, um dos produtores da casa contou que ainda que tragam grupos musicais de outros estilos, como o pagode, é, de fato, o funk o que mais atrai público para as noites de festa. Com todo esse sucesso e com a virada da referência à criminalidade para a exaltação ao consumo, o funk em São Paulo tem conseguido certo espaço na mídia tradicional. Muitos Mcs já se apresentam, ainda que esporadicamente, em programas populares de televisão como os do Ratinho, Luciana Gimenez, Gilberto Barros, Esquenta da Regina Casé etc. Nesses programas, os funkeiros do gênero ostentação são caracterizados por fazerem um “funk do bem”, por não falarem de crime, nem de pornografia, ressaltando-se também, na maioria das vezes, a trajetória dos Mcs, de uma origem pobre ao sucesso e ao consumo e posse de bens caros. No clipe de Nóis de Nave, do Mc Boy do Charmes, a abertura traz, aliás, a fala de um animador de um programa de concurso de novos talentos musicais[20] [20] Astros, na emissora SBT.

Rede global periférica

A associação do funk ostentação às novas tecnologias possibilita estabelecer uma discussão mais ampla sobre as produções culturais juvenis que cada vez mais transcendem as fronteiras das localidades onde foram criadas. Falei muito aqui desse funk ostentação como um funk paulista, essa denominação talvez não seja a mais adequada, pois da mesma forma como a inspiração no funk carioca é grande, o próprio funk carioca tem se tornado um gênero musical nacional, dada a sua enorme propagação pelo país. Além disso, o funk paulista não rompe com o carioca, mas amplia as relações com este, reinventando-o e propondo novas possibilidades de atuação. As referências ao consumo e à ostentação já estavam em outros funks do Rio de Janeiro, embora de maneira menos intensa e ainda muito atreladas à criminalidade. Em São Paulo, apenas ocultou-se a criminalidade e exaltou-se muito mais o consumo e as grifes, fato, aliás, também feito hoje, em grande medida, pelos funkeiros cariocas e de outras localidades do país. Talvez, nessa vertente ostentação, fosse possível falar de um funk carioca apaulistanado.

Essa difusão do funk carioca por outras grandes cidades brasileiras é um dos aspectos que quero destacar aqui, a princípio, como a globalização do periférico. Muito se tem discutido sobre o processo de globalização de outra expressão cultural juvenil, o hip hop, com coletâneas de pesquisadores que enfocam as dinâmicas locais de reinvenção desse movimento musical em diferentes partes do planeta. Com destaque para os trabalhos: The vinyl ain’t final, organizado por Dipannita Basu e Sidney Lemelle (2006), e Global noise, organizado por Tony Mitchell (2001), no qual afirma que a globalização da música rap não seria uma simples apropriação de um idioma cultural e musical dos Estados Unidos, mas envolveria diferentes modalidades de indigenização e sincretismo. Esse autor trabalha especificamente com o hip hop entre os Maori na Nova Zelândia. Percebe-se então que gêneros musicais criados em determinadas localidades, quase sempre por influência ou pela junção de outros gêneros, que expressam as condições marginais em que viveriam os jovens protagonistas e consumidores desses estilos, acabam conseguindo difusão mais ampla. Entretanto, apesar de identificados fortemente com uma determinada localidade e de serem bastante criminalizados e marginalizados – o próprio funk carioca, por exemplo – esses estilos têm, por meio da agência das novas tecnologias e de processos alternativos de produção e difusão, expandindo-se de modo mais amplo por outros bairros das cidades onde surgiram e mesmo por outras cidades e países.

Exemplos similares ao do funk no Brasil podem ser encontrados em outros países da América Latina, como é o caso da cumbia villera[21] [21] Villa em referências às villas de emergência ou villas misérias, designações para as favelas na Argentina. Sendo assim, cumbia villera, seria o mesmo que cumbia de favela. Um exemplo da música e das referências desse estilo pode ser assistido aqui: www.youtube.com/watch?v=TztPz6eQv4s&feature=fvwrel. Acesso em: 24 mar.2013. em Buenos Aires, Argentina. Surgido nos bairros pobres da periferia da região metropolitana de Buenos Aires, a cumbia villera seria uma reinvenção da cumbia, gênero musical de origem colombiana, engendrada principalmente por migrantes de outros países da América do Sul para a capital porteña, como peruanos, bolivianos e colombianos. Da mesma forma que o funk carioca no Brasil, a cumbia villera tem conquistado muitos adeptos entre os jovens pobres e sido extremamente marginalizada por ser considerada uma música de mau gosto e com letras consideradas pobres. Por outro lado, ao mesmo tempo, de modo similar ao que acontece com o funk no Brasil, hoje, a cumbia villera já é trilha sonora de muitas discotecas frequentadas por jovens de camadas mais abastadas de Buenos Aires. Outro estilo que tem evocado fenômenos semelhantes são as narcobaladas, também conhecidos como norteñas na Colômbia. As narcobaladas seriam desdobramentos dos narcocorridos mexicanos ou corridos prohibidos, caracterizados por músicas que exaltam a criminalidade e o tráfico de drogas. No repertório musical, há letras como a que retoma o lema de um dos cartéis colombianos de tráfico de drogas: prefiero una tumba en Colombia a una carcel en Estados Unidos[22][22] Disponível em: www.youtube.com/watch?v=uxcc7T3UkRg. Acesso em: 24mar. /2013., além de outra que exalta: Gracias a la coca[23]Disponível em: www.youtube.com/watch?v=SoEQy0rkhKU. Acesso em: 24 mar./2013., por exemplo. Ambos os gêneros misturam referências regionais com outras mais globais, que podem ser tanto a criminalidade e o tráfico internacional de drogas como o consumo. Na Europa, por sua vez, há um movimento musical muito semelhante em alguns aspectos ao funk ostentação, trata-se do coupé-decalé, criado nos anos 2000 por migrantes costa-marfinenses e difundido nos subúrbios de Paris. O coupé-decalé, além da mistura de ritmos, também buscou associar-se a marcas e produtos de luxo e a ideia de ostentação[24] [24] Para um exemplo do estilo musical ver: www.youtube.com/watch?v=WeLnKerpLO4. Acesso em: 24 mar.2013..

O estudo de tais práticas pode trazer contribuições importantes para o campo de discussão sobre as diferenças, pois todas elas estão de alguma forma articuladas de modo bastante complexo com questões de classe social, idade e geração, raça, nacionalidade e território, gênero, sexualidade etc. Podemos observar em todos esses estilos, o fenômeno apontado por Marshall Sahlins (1997), de indigenização da modernidade, ou, nesse caso específico, de periferização da modernidade. Portanto, entender como esses diferentes estilos, articulados em circuitos mais amplos, são produzidos e recebidos e/ou consumidos por uma parcela considerável da juventude em diferentes localidades, implica também entender como algumas modalidades de produção estética, como as aqui descritas, têm problematizado ou tensionado algumas dicotomias utilizadas para analisar as relações sociais estabelecidas no mundo contemporâneo, particularmente nas grandes cidades. Assim, ideias como a contraposição entre o global e o local ou mesmo entre centro e periferia são postas em questão a partir desses novos agenciamentos juvenis. Por isso mostra-se importante tentar escapar do procedimento apontado por Arjun Appadurai (1988) de encarcerar os “nativos” em seus lugares. Pelo contrário, deve-se pensar fenômenos como esse da difusão e da reinvenção do funk carioca em São Paulo a partir da dimensão das ethnoscapes apontadas por Appadurai como a paisagem de pessoas construindo os mundos mutáveis que habitam, “porque cada vez mais pessoas e grupos se relacionam com a realidade de terem de se mover ou com a fantasia de quererem mover-se” (APPADURAI, 1997, p. 34).

Outro aspecto importante de fenômenos culturais como esses está na proposição de Stuart Hall (2003) de que haveria um grande fascínio, dentro do campo da produção cultural contemporânea, pelo popular e o marginal. Esse fenômeno seria uma decorrência das políticas de diferença que teriam propiciado o surgimento de novos sujeitos no cenário político cultural. O pós-moderno, afirma esse autor, estabeleceria uma abertura ambígua para a diferença e para as margens.

Dentro da cultura, a marginalidade, embora permaneça periférica em relação ao mainstream, nunca foi um espaço tão produtivo quanto é agora, e isso não é simplesmente uma abertura, dentro dos espaços dominantes, à ocupação dos de fora (HALL, 2003, p. 38).

Nesse sentido, a observação da articulação em rede com outras produções culturais e juvenis do mundo mostra-se como um caminho bastante promissor para se entender esses fenômenos, por meio de uma perspectiva etnográfica multilocalizada, conforme a discussão feita por George Marcus (1995). A dinâmica do funk paulista já tem apresentado temas importantes para se pensar essas relações a partir do circuito das casas noturnas no Brasil, já percorrido pelos Mcs paulistas de funk ostentação[25] [25] Os Mcs de maior sucesso do funk ostentação postam constantemente, em seus perfis em redes sociais como o Twitter, relatos de viagens para cidades do interior de São Paulo e para outras capitais e importantes cidades brasileiras como Porto Alegre, Belo Horizonte, Florianópolis etc. e da relação ambígua com a periferia – há a valorização da origem pobre, mas também a exaltação de práticas de consumo de produtos de alto valor. Diz o MC Boy do Charmes, em Onde eu chego eu paro tudo, que sua maior riqueza é a humildade, porém, mesmo assim, afirma ir atrás da fartura, porque “a riqueza não traz felicidade, mas afasta a tristeza”. Além disso, como já demonstrado, deve-se atentar para as particularidades das relações desses jovens com o consumo e com a rede de serviços urbanos e mesmo com os fluxos que estabelecem por meio dos complexos e sofisticados usos inovadores das novas tecnologias da informação e da comunicação.

Perspectivas

As referências desse funk que exalta o consumo de bens de alto valor têm despertado sentimentos contraditórios. Por um lado, há uma maior aceitação nas casas noturnas e mesmo em programas da grande mídia, por não falar de crime e sexo abertamente, como na versão proibidão. Por outro, em setores mais intelectualizados e mesmo em ONGs, esse movimento do funk ostentação tem sido visto com certa reserva e mesmo aversão em alguns casos. Essa visão decorre de uma postura muito comum nesses meios sociais específicos, que é a de tentar ver as práticas culturais ou movimentos juvenis, principalmente dos mais pobres, como potencialmente revolucionários ou transformadores, repudiando tudo que soe como apolítico ou não contestador. Geralmente, esse tipo de visão decorre de um modo de ver o jovem pobre dentro de três perspectivas: a do delinquente, a da vítima ou a do revolucionário. Essa aversão ao funk é potencializada ainda pela influência e grande aceitação do hip hop nesses segmentos sociais, pois o funk, principalmente nessa vertente ostentação, não traz as referências políticas como aconteceu com esse outro movimento. O funk ostentação não porta também marcas de elementos transgressores que poderiam ser entendidos como potencialmente transformadores.

O hip hop, aliás, pode servir-nos como um contraponto interessante para essa tentativa de apresentar e caracterizar o funk ostentação em São Paulo. Retomo mais uma vez uma explicação de Montanha da Funk TV, para ele, que se iniciou no audiovisual a partir dessa sua inserção no hip hop e em ONGs como a Ação Educativa[26] [26] Disponível em: www.acaoeducativa.org. Acesso em: 28 mar.2013., há uma diferença fundamental entre os dois movimentos musicais. O hip hop estaria mais voltado para o âmbito da cultura, entendido por ele como atrelado intrinsecamente à política, já o funk para o lazer. O primeiro propiciaria um espaço de expressão e de manifestação cultural/política. O segundo, de encontro, lazer e sociabilidade juvenil. Esse espaço proporcionado pelo funk está ligado diretamente a um aspecto de forte diferenciação entre os dois movimentos: a participação das mulheres. Enquanto o hip hop teria pouco espaço para as mulheres, seja como público, seja como protagonista das expressões estéticas, o funk garante um espaço fundamental para a mulher: a dança. O modo como a mulher é tratada ou abordada no funk pode até ser criticado por tender ao sexismo e/ou ao machismo, mas não se pode negar que a mulher é seu público fundamental e tem participação ativa nas festas. Encontra nele, portanto, protagonismo e destaque que não encontrava no hip hop.

Aponta-se, inclusive, para o que é considerado por alguns como uma debandada dos fãs do hip hop para o funk. Entretanto, cabe também o alerta de que não se pode construir, particularmente em São Paulo, uma dicotomia entre funk e hip hop, pois, muitas músicas do primeiro trazem referências do segundo e, ademais, presenciei muitos shows nos quais os Mcs de funk incluíam raps em seu repertório, principalmente músicas dos Racionais Mc’s. Contudo, um DJ de hip hop, certa vez, apresentou-me a seguinte explicação para esse movimento de aumento de adeptos do funk e diminuição de adeptos do hip hop nas periferias de São Paulo:

O hip hop perdeu um pouco a referência porque o funk pegou pesado, porque a batida do funk é hip hop, vem do miami bass. E eles pegaram a nossa base: a juventude da periferia. O funk seduziu pelo sexismo e o machismo. Pegou primeiro as mulheres, e depois os homens foram de embalo. Muitos nem dançam, mas como tem mulher... O funk levou muitos dos jovens que estavam nas baladas de hip hop. O hip hop errou um pouco e perdeu público. Tem gente dentro do hip hop que se bandeou.[27] [27] Informação fornecida pelo DJ Tom em São Paulo, em 2009.

A fala do DJ, apesar de bastante lamuriosa, por conta do declínio do público do hip hop aponta para dois aspectos importantes para se entender, ao mesmo tempo, esse refluxo do rap, por um lado, e o avanço do funk, por outro. Um deles e, talvez o mais importante, seria o espaço que o funk concederia a dança, no qual as mulheres teriam um papel fundamental, ao contrário do hip hop, em que a dança, o break, ainda que não exclusivamente masculina, teria um imenso domínio dos homens e seria marcada por componentes agonísticos mais associados a padrões hegemônicos de masculinidade e/ou virilidade. O outro, decorrente direto desse, seria a grande presença de mulheres nas baladas funks, o que atrairia os homens, conforme destaca o DJ.

Se atentarmos, além disso, para as músicas, notamos o quanto a mulher nas letras do hip hop são, muitas vezes, depreciadas[28][28] Tricia Rose (1994) desenvolve uma importante reflexão sobre a presença das mulheres no hip hop no contexto estadunidense em um dos capítulos do seu livro Black Noise.. Basta observar algumas músicas do mais importante grupo de hip hop de São Paulo e do Brasil, os Racionais Mc’s. Numa delas, o próprio título e refrão já evidencia: “mulheres vulgares, uma noite e nada mais”. Em outra, A fórmula mágica da paz, eles cantam:

Eu sei como é que é, é foda parceiro, é a maldade na cabeça o dia inteiro.
Nada de roupa, nada de carro, sem emprego, não tem ibope, não tem rolê, sem dinheiro.
Sendo assim, sem chance, sem mulher, você sabe muito bem o que ela quer.
Encontre uma de caráter se você puder,
É embaçado ou não é?

Por outro lado, o chamado funk ostentação, tem sua versão exaltação da mulher, com músicas como: Ela é top do Mc Bola e Ela é terrível, do Mc Pikeno e Menor, cujas letras afirmam, por exemplo, respectivamente:

Ela não anda, ela desfila
Ela é top, capa de revista
É a mais mais, ela arrasa no look
Tira foto no espelho pra postar no Facebook.
(Mc Bola)[29] [29] Mc Bola, Ela é top. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=3iUV_WIqPJw. Acesso em: 26 mar.2013.

Pode deixar que ela vai,
Escolher uma noitada
Não é interesseira,
Mas quer andar bem acompanhada
(Mc Pikeno e Menor)[30] [30] Mc Pikeno e Menor, Ela é terrível. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=eQyjFzp_9G8. Acesso em: 26 mar.2013.

Curiosamente, uma percepção de um suposto apego das mulheres ao consumo e uma maior admiração por homens que detenham certo poder econômico, criticado pelos rappers, é o item mais valorizado e exaltado como comportamento ideal de uma mulher por esse estilo ostentação no funk.

Essa questão de gênero é uma das perspectivas importantes para se prosseguir uma discussão mais aprofundada sobre essa vertente do funk em São Paulo, que apenas indico aqui não como conclusão, mas justamente como potencialidades e perspectivas futuras para reflexões mais focalizadas nesse fenômeno. O mesmo vale para o consumo, que aqui foi levantado, mas não devidamente aprofundado. A proposta nesse artigo, de certa forma, foi a de apresentar uma descrição inicial, uma espécie de primeiro mapeamento, desse movimento que se iniciou há tão pouco tempo, traçando suas relações e apontando para a importância, nele, da imagem e da imaginação. Contudo, não se pretende aqui caracterizar o funk ostentação como um movimento bem delimitado, mas justamente mostrar como essas expressões juvenis têm a capacidade de transformar-se, construir-se e reconstruir-se, indicando uma forte tendência dessas práticas articuladas em torno desse estilo musical em agenciarem constantemente, novas possibilidades, configurações e referências. No limite, o que descrevo aqui são apenas alguns dos elementos que compõem esse funk ostentação, a partir de minhas experiências de campo iniciadas de forma mais intensiva no segundo semestre de 2012. Muitas mudanças ocorreram desde a cena funk descrita no clássico O Mundo Funk Carioca de Hermano Vianna (1988) e muitas outras transformações têm ocorrido e certamente outras ainda se realizarão no circuito do funk em São Paulo e no Brasil.

Uma última ressalva a ser feita com relação à questão da ostentação é de  que ela não é novidade, pois já estava presente nos funks chamados proibidões. Ao perceber essas continuidades e rupturas que essa prática cultural musical estabelece com a sua origem carioca, a preocupação maior deve ser, portanto, com o que, nessa nova modalidade, o funk é capaz de agenciar a partir da articulação das diferentes redes de sociabilidade online e offline. Pode-se dizer também que muito do que é apontado como luxo e ostentação nesse contexto do funk, não o seria nos contextos de ostentação e riqueza de fato. Contudo, considero esse aspecto o menos importante, pois o mais central, ao menos para essa pesquisa, é justamente pensar em como essa dimensão é mobilizada e imaginada por esses jovens e, ainda mais central, apontar para a necessidade de se refletir sobre como criminalidade e consumo podem se constituir em dois lados de uma mesma moeda que podem ser mobilizados e entendidos de maneiras diferentes, conforme o contexto.

notas de rodapé

 
[1] Reclamações sobre os pancadões, aliás, são constantes em reuniões dos Conselhos Comunitários de Segurança (CONSEGs) pela cidade. Esses Conselhos Comunitários de Segurança fazem reuniões com agentes da segurança pública – delegados, e responsáveis por policiamento local – e moradores dos bairros onde se instalam as delegacias responsáveis pela segurança da área. Acompanhei muitas dessas reclamações em reuniões do CONSEG Cidade Ademar entre os anos de 2007 e 2010.
[2] Como é conhecido o grupo de ex-policiais com mandato no legislativo municipal em São Paulo.
[3] Nas primeiras incursões junto ao funk em São Paulo, pude contar com um parceiro de campo, Leonardo Cardoso, que realiza pesquisa sobre as controvérsias do som e dos ruídos em São Paulo para sua tese de doutorado pela Universidade do Texas. Ele, interessado em compreender como o funk insere-se na polêmica das discussões sobre poluição sonora e as políticas de silêncio urbano em São Paulo e eu, em refletir sobre o funk como produção cultural dissonante e dispositivo de sociabilidade juvenil em São Paulo.
[4] TESTE - Disponível em: http://www.nitronight.com.br/. Acesso em: 28 mar. 2013.
[5] Disponível em: http://www.conexaourbana.com/. Acesso em: 28 mar. 2013.
[6] Para uma reflexão sobre o uso do designativo “universitário” em alguns gêneros musicais, ver Daniela Alfonsi (2007), em pesquisa sobre o forró universitário em São Paulo.
[7] Site de compartilhamento de vídeos na internet.
[8] Mc Danado,Top do Momento. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=PlSt7KScE60. Acesso em: 24 mar. 2013.

bibliografia

 

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