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  • Editorial

    Editorial

    por 
    os editores
    resumo 
    A Revista Estudos Culturais chega agora ao seu número três, no mesmo momento em que o Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais da EACH-USP completa seu sexto ano de atuação. O amadurecimento de nossas empreitada é marcado pela amplitude dos temas desta edição da Revista. O campo dos estudos culturais, sempre liberto das amarras disciplinares tradicionais, aparece aqui em várias de suas múltiplas chaves.
  • Sobre os autores

    Sobre os autores

    resumo 
    Eduardo Wanderley Martins, Carlos Velázquez, Damián Cabrera, Madalena Pedroso Aulicino, Daniela Signorini Marcilio, Agnès García Ventura, André Vitor Brandão Kfuri Borba e Mariana Moreira.
  • Mídia: o Novo Totem Dessacralizado

    Mídia: o Novo Totem Dessacralizado

    por 
    Eduardo Wanderley Martins e Carlos Velázquez
    resumo 
    O presente texto tem como objetivo refletir sobre a função de mediação da Mídia para o Sagrado, partindo da concepção de Mídia como novo totem nas sociedades contemporâneas. Sob a metodologia indutivo-analítica de base bibliográfica e documental, explora-se a hipótese de que a mídia, como novo totem nas sociedades midiáticas , cumpre a função organizadora, mas não a função mediadora. A mídia não liga as aspirações e necessidades humanas ao Transcendente, encerrando em si mesma a satisfação dessas aspirações através do fornecimento de bens simbólicos, mas que não têm contato com suas fontes originárias – não há relação com o Sagrado. Dessa forma, a mídia se apresenta nas sociedades midiáticas como um totem dessacralizado - oferece bens de grandes valores universais, mas desprovidos de lastro divino.
    palavras-chave 
  • Literatura paraguay/guaraní - transversalidades

    Literatura paraguay/guaraní - transversalidades

    por 
    Damián Cabrera
    resumo 
    Passando por trabalhos compilatórios dos escritores paraguaios Augusto Roa Bastos e Rubén Bareiro Saguier, e a partir de discursos literários e não literários, analisa-se a ambiguidade fundada na palavra guarani; que designa, indistintamente, uma língua, uma cultura, uma etnia; e que, por metonímia, constitui-se em apelido-gentílico dos paraguaios. Relações entre literatura paraguaia e literatura Guarani são exploradas, desde a perspectiva dos autores citados; tanto conhecedores e divulgadores da mesma, como dois dos poucos paraguaios capazes de ultrapassar um cerco de isolamento cultural graças, em parte, ao exílio político; sob a luz de uma tradição crítica latino-americana hispanizante que, enquanto invisibiliza a literatura paraguaia, contribui com uma mistificação dela, fundada em sua peculiaridade linguística, seja ela real ou inventada.
    palavras-chave 
  • O brincar e o saber de experiência: uma forma de resistir

    O brincar e o saber de experiência: uma forma de resistir

    por 
    Madalena Pedroso Aulicino e Daniela Marcílio
    resumo 
    O brincar é uma atividade livre e séria, possui finalidade autônoma e é um intervalo da vida cotidiana (HUIZINGA, 2005; CAILLOIS, 1990). A criança se desenvolve, adquire experiência, constrói e transmite sua cultura lúdica brincando (WINNICOTT, 1979; BROUGÈRE, 2008). Mas, que brincar é esse promovido e recomendado na atualidade? O objetivo desse artigo é refletir sobre a redução do tempo da infância em prol de uma ideologia da produção e do consumo, que valoriza a informação, o conhecimento e o aprendizado técnico e científico, e reduz o “saber de experiência” (BONDÍA, 2002). Nesse contexto, a retomada do brincar como atividade livre e uma experiência de vida seria uma possibilidade de resistência aos valores vigentes. Constatou-se que os Estudos Culturais como estratégia crítica e política podem contribuir para repensar o brincar hoje.
    palavras-chave 
  • Investigación feminista, historia de las mujeres y mujeres en la historia en los estudios sobre Próximo Oriente Antiguo

    Investigación feminista, historia de las mujeres y mujeres en la historia en los estudios sobre Próximo Oriente Antiguo

    por 
    Agnès García Ventura
    resumo 
    Suele decirse que el estudio del pasado siempre tiene relación con el presente y con el futuro, bien porque presente y futuro se construyen a su imagen y semejanza, bien porque no podemos imaginar un pasado sin los referentes de nuestro presente. Por este motivo, ocuparse de la historia de las mujeres en la Antigüedad y de cómo incluir a las mujeres en la historia, nos permite reflexionar acerca de la situación de las mujeres en el mundo presente en el que vivimos y en el mundo futuro en el que querríamos vivir. En este artículo propongo aproximarnos a este tema con las herramientas críticas de la investigación feminista, ilustrando la propuesta con algunos ejemplos acerca de cómo algunos sesgos pueden afectar al modo en que se aborda el estudio de las vidas de las mujeres en el Próximo Oriente Antiguo.
  • A higienização do século XIX e o "contra corrupção" do século XXI: Similaridades no discurso das elites no Brasil

    A higienização do século XIX e o "contra corrupção" do século XXI: Similaridades no discurso das elites no Brasil

    por 
    André Vitor
    resumo 
    Cada momento histórico é único, mas carrega em si tensões permanentes, num paradoxo entre o novo e o velho, valendo-se de novas experiências sem, entretanto, negar toda a bagagem cultural adquirida. Assim, este trabalho busca relacionar dois momentos distintos da história do Brasil, mas com características em comum: a higienização do início da República e o momento recente, em que estava em jogo o mandato da presidente Dilma Rousseff. Por ser o Brasil um país com pouca mobilidade social e sem alterações substanciais no seu controle político, veremos como os interesses das camadas superiores da sociedade se reproduzem e se perpetuam, no intuito de fazer a população aderir a essa ideologia em favor de seus interesses privados.
    palavras-chave 
  • Resenha do livro Memória Coletiva e Identidade Nacional, Miryam Santos

    Resenha do livro Memória Coletiva e Identidade Nacional, Miryam Santos

    por 
    Mariana Moreira
    resumo 
    A presente resenha aborda o livro “Memória Coletiva e Identidade Nacional”, de autoria de Myrian Sepúlveda dos Santos. Importante pesquisadora de temas como memória, identidade, práticas políticas, culturais e relações raciais, obteve seu título de doutora em Sociologia pela New School for Reserch de Nova Iorque e desenvolveu pesquisas em pós-doutorado no Centro de Estudos Latino-Americanos da University of Cambridge; no Centro de Pesquisa sobre Relações Sociais da Université de Paris V e no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Atualmente é professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e coordena o Grupo de Pesquisa Cultura e Poder, registrado no CNPQ Arte, e o museu Afrodigital. Suas análises abordam teorias de nomes de grande relevância para os Estudos Culturais como Karl Marx, Walter Benjamin, Michel Foucault, Maurice Halbwach, Stuart Hall entre outros.
    palavras-chave 

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  • Temporalidades

    Temporalidades

    por 
    Luiz Menna-Barreto e Mario Pedrazzoli
    resumo 
    Esta edição da Revista Estudos Culturais foi dedicada a estudos sobre o tempo, tema recorrente em diversas áreas do conhecimento e que vem adquirindo relevância crescente num mundo globalizado no qual as pessoas acabam se expondo a desafios inéditos até meados do século XX. Atravessamos fusos horários, acompanhamos bolsas de valores em Tóquio e Nova York e assistimos a jogos que ocorrem do lado oposto do planeta, numa sucessão de eventos que acontecem em tempos próprios e que nem sempre coincidem com os tempos de cada indivíduo. Surge nesse contexto certa tensão entre nossas percepções da passagem do tempo, aquela interna que dialoga com nosso sono ou fome e a outra externa, imposta pelos vários relógios aos quais tentamos obedecer. Dessa tensão emergem reflexões que trazemos aos leitores, reflexões inspiradas em diferentes olhares que vão desde aspectos filosóficos e sociológicos a aspectos biológicos.
  • Sobre os autores

    Sobre os autores

    resumo 
    Luiz Menna-Barreto, Mario Pedrazzoli, Robert Levine, Muara Kizzi Figueiredo, Rafael H. Silveira, Rafael Chequer Bauer, Alexandre Panosso Neto e Luiz Gonzaga Godoi Trigo escrevem no número dois da Revista de Estudos Culturais.
  • Ordem e progresso, aceleração e alienação

    Ordem e progresso, aceleração e alienação

    por 
    Rafael H. Silveira
    resumo 
    Como diversos exemplos dados em Aceleração e alienação [1] [1] ROSA, Hartmut. Beschleunigung und Entfremdung: Entwurf einer kritischen Theorie spätmoderner Zeitlichkeit. Traduzido do inglês para o alemão por Robin Celikates. Berlim: Suhrkamp Verlag, 2013. confirmam, a condição de especialista no campo da aceleração social muitas vezes não exime o próprio autor da ação dos fenômenos por ele analisados – sobretudo por se tratar de uma das personalidades acadêmicas mais conhecidas, citadas e requisitadas na imprensa alemã atualmente. Como minha resenha da análise de Hartmut Rosa mostra, a obra está longe de ser die Entdeckung der Langsamkeit ou um éloge de la lenteur, como interpretado por alguns. No diálogo, conduzido em 23/10/2014 na cidade de Jena, Alemanha, originalmente em alemão, transcrito, editado e traduzido para o português por Rafael H. Silveira, são abordados pontos que complementam o entendimento da Teoria da Aceleração através de uma perspectiva voltada para a realidade brasileira.
  • Tempo e bem estar

    Tempo e bem estar

    por 
    Robert Levine
    resumo 
    Neste artigo examino o impacto da experiência temporal – o emprego do tempo, concepções do tempo e normas temporais - sobre a felicidade e o bem estar; sugiro políticas públicas voltadas à ampliação dessa experiência. Inicio com uma revisão da literatura relativa às interrelações entre o tempo, dinheiro e felicidade. Em segundo lugar, reviso dados e questões em torno dos horários de trabalho e não trabalho ao redor do mundo. Em terceiro lugar, descrevo numa perspectiva mais ampla as questões temporal que deveriam ser levadas em consideração nas decisões de políticas públicas, por exemplo, medidas de relógio versus eventos, enfoques monocrônicos versus policrônicos, definições de tempo perdido, ritmo de vida e orientação temporal. Concluo com sugestões para a elaboração de políticas do emprego do tempo voltadas para aumentar a felicidade individual e coletiva. Trata-se de um truísmo virtual o modo como empregamos nosso tempo se expressa no modo como vivemos nossas vidas. Nosso tempo é o bem mais valioso do qual dispomos. Boa parte desse tempo, no entanto, é controlado por outros, desde nossos empregadores até nossos familiares mais próximos. Também está claro que existem diferenças profundas – individuais, sócio econômicas, culturais e nacionais – no grau de controle que indivíduos exercem sobre seus próprios tempos (ver p. exemplo LEVINE, 1997; LEE, et al., 2007). Pode ser argumentado que políticas públicas são necessárias para proteger os “direitos temporais” dos indivíduos, particularmente aqueles mais vulneráveis à exploração. Este artigo foi motivado por um projeto de largo espectro do qual tive a oportunidade de participar. O projeto começou na primavera de 2012 na sequência de uma resolução da ONU, aprovada por unanimidade em sua Assembleia Geral, na qual “felicidade” foi incluída na agenda global. O Butão foi convidado a receber um grupo interdisciplinar de “experts” internacionais com a tarefa de elaborar recomendações para incentivar a busca da felicidade no planeta; mais especificamente desenvolver um “novo paradigma para o desenvolvimento mundial”. O Butão é um pequeno país pobre, cercado de montanhas na região do Himalaia, foi escolhido para essa tarefa em função do pioneirismo de seu projeto de “Felicidade Nacional Bruta” - FNB (Gross National Happiness - GNH). “Progresso” na definição dos autores desse projeto, “deveria ser visto não apenas através das lentes da economia como também a partir de perspectivas espirituais, sociais, culturais e ecológicas”. Felicidade e desenvolvimento, em outras palavras, dependem em mais fatores do que o crescimento e acumulação de capital. Inglaterra, Canadá e outros países e organizações de dimensões nacionais seguiram na mesma direção do Butão, estabelecendo medidas de FNB (LEVINE, 2013). Um dos domínios centrais do índice de FNB do Butão é “emprego do tempo” que correspondeu à minha participação no relatório do grupo de estudo. Este artigo está bastante apoiado naquele relatório e nas inferências que o projeto me proporcionou. Discuto quatro conjuntos de temas: I. As interrelações entre tome, dinheiro e felicidade. Máxima importância, qual a relevância do emprego do tempo com o bem estar e a felicidade? II. Emprego do tempo: questão dos horários e políticas de organização do trabalho. III. Outors fatores tempais que devem ser considerados ao formularo políticas de promoção de felicidade.. IV. Sugestões para elaboração de políticas: a chamada para uma “Lei de Direitos Temporais”.
  • A ilusão dos relógios: uma ameaça à saúde

    A ilusão dos relógios: uma ameaça à saúde

    por 
    Mario Pedrazzoli
    resumo 
    A mecanicidade ou digitalidade dos relógios representa a imutabilidade da duração de frações de tempo. A contagem das 24h de um dia teve como referência, a princípio, as pistas ambientais associadas às condições do dia e da noite que são diferentes em diferentes locais da terra e portanto mutáveis. A emergência de uma sub-área da Biologia, a Cronobiologia, em meados do século XX permitiu a interpretação de que a apreensão do tempo de um dia como regularidade mecânica aliena os seres humanos da percepção da temporalidade diária como integração entre temporalidade ambiental e temporalidade biológica. Pretendo demonstrar que esse equívoco perceptual da duração do tempo de um dia pode ter como consequência uma desorganização temporal fisiológica que é a origem ou está associada a origem de muitas doenças modernas.
  • Os horários fora de lugar – ritmos biológicos e literatura

    Os horários fora de lugar – ritmos biológicos e literatura

    por 
    Muara Kizzy Figueiredo
    resumo 
    Este trabalho analisa a relação existente entre personagens e ambiente e objetiva investigar como, supostamente, se deu a implantação no Brasil do século XIX dos ritmos sociais europeus, tendo em vista os ritmos biológicos da população brasileira (em termos coletivos) – adaptada ao ambiente tropical. Para tal estudo, foram analisados alguns textos literários do período (em especial a obra de Machado de Assis e Eça de Queirós) - visando identificar menções aos horários de sono, refeições, atividades sociais e aspectos do sono; bem como a leitura de autores contemporâneos que discutem a construção de identidades nacionais – em especial no Brasil – e ainda; autores que investigam a temática do tempo – seja em termos cronológicos, psicológicos e biológicos.
    palavras-chave 
  • Slow movement: reação ao descompasso entre ritmos sociais e biológicos

    Slow movement: reação ao descompasso entre ritmos sociais e biológicos

    por 
    Rafael Chequer Bauer, Alexandre Panosso Netto e Luiz Gonzaga Godoi Trigo
    resumo 
    Este artigo discute o descompasso entre os ritmos biológicos e os ritmos sociais emergentes a partir da Revolução Industrial. Para tal, são apresentados indícios de mudanças rítmicas nas últimas décadas, acarretando um processo contínuo e profundo de aceleração e mecanização sociocultural, predominante nas estruturas societárias capitalistas. Em seguida, discute-se a relação entre ritmos sociais e ritmos biológicos, com a contribuição conceitual advinda da Cronobiologia. Por fim, destaca-se o processo de surgimento e consolidação do Slow Movement nas últimas décadas, tornando-se mais um indício da desarticulação temporal vivenciada nos dias atuais.
  • Os tempos da vida

    Os tempos da vida

    por 
    Luiz Menna-Barreto
    resumo 
    O tema do tempo tem atraído bastante atenção no ambiente acadêmico contemporâneo. Apresentarei uma abordagem na qual são associados os conceitos de condicionamento reflexo clássico com a cronobiologia, área na qual a dimensão temporal da matéria viva é explorada. O conceito de antecipação é proposto como elo central dessa associação. Discuto a seguir os níveis de determinação que podem ser propostos a partir da observação de fenômenos temporais nos organismos. Concluo com as noções de desafios e armadilhas temporais que parecem caracterizar fortemente os dilemas humanos num mundo globalizado, conduzindo a diferentes processos de adaptação resultantes desses desafios e armadilhas.
  • Resenha do livro Aceleração e alienação: Esboço de uma teoria crítica da temporalidade na Modernidade tardia, Harmut Rosa

    Resenha do livro Aceleração e alienação: Esboço de uma teoria crítica da temporalidade na Modernidade tardia, Harmut Rosa

    por 
    Rafael H. Silveira
    resumo 
    Em Aceleração e alienação: Esboço de uma teoria crítica da temporalidade na Modernidade tardia, Hartmut Rosa recapitula resumidamente e amplia sua Teoria da Aceleração Social. A ampliação da teoria se dá em primeiro lugar através da análise de elementos desaceleradores da tendência aceleratória e, em seguida, da análise das consequências da aceleração para a Teoria Crítica social atual, cujos questionamentos levantados e respostas dadas até o presente momento não apresentariam uma solução para a perda da credibilidade do projeto da Modernidade, uma vez que a aceleração social teria sucumbido e instrumentalizado a possibilidade de autonomia prometida. Partindo da busca de uma resposta à questão de o que seria uma vida plena, Rosa retraça, assim, o contexto do surgimento de diferentes categorias de alienação, retratando em sua teoria uma tendência social crescente extremamente relevante e em crescimento na era moderna.
artigo anterior 

Estudios culturales en América Latina

por 
Eduardo Restrepo
resumo 
Duas grandes confusões parecem operar, com frequência, nos discursos em torno dos estudos culturais na América Latina. A primeira é a equivalência de estudos culturais e estudos sobre a cultura. A segunda, muito frequente no contexto estadunidense, é misturar sob o rótulo de estudos culturais a produção heterogênea de intelectuais latino-americanos que abordaram assuntos de cultura e poder e a de acadêmicos latino-americanistas das universidades do Norte. Neste artigo se evidenciam os problemas de ambas as confusões e se sublinham algumas de suas nefastas consequências para a articulação de um projeto intelectual e político de estudos culturais na América Latina.
próximo artigo 

Rolezinhos: Marcas, consumo e segregação no Brasil

por 
Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco
resumo 
No início de 2014, o fenômeno conhecido como rolezinho ganhou ampla visibilidade nacional e internacional. Trata-se de adolescentes das periferias urbanas que se reúnem em grande número para passear nos shopping centers de suas cidades. O evento causou apreensão nos frequentadores e fez com que alguns proprietários dos estabelecimentos conseguissem o direito na justiça de proibir a realização dos rolezinhos, barrando o acesso dos jovens. Desde então, emergiu um amplo debate sobre segregação na sociedade brasileira. Com base em uma pesquisa etnográfica sobre consumo popular com jovens da periferia de Porto Alegre, o artigo analisa o fenômeno dos rolezinhos, abordando suas dimensões locais, nacionais e globais. Levando em consideração o atual momento brasileiro, que versa sobre políticas de ascensão social via consumo e sobre uma onda de protestos de inquietação social, argumentamos que os rolezinhos estão se modificando e encontrando diversas formas de discutir e realizar política cotidiana no âmago de uma sociedade segregada.
 
dossiê sobre cultura popular urbana

Valesca Popozuda: ministra da Educação

por 
Aristóteles Berino
resumo 

Os chamados funks sensuais fazem parte da cultura juvenil da cidade do Rio de Janeiro. Valesca Popozuda é uma das suas principais estrelas, amplamente conhecida através das mídias. As vozes femininas do funk chamam atenção pelas letras que narram façanhas e fantasias que destoam da imagem que são destinadas ao sexo feminino. São vozes que que presentificam existências recalcadas pelo falocentrismo dominantes nas narrativas sobre o amor, o sexo e a vida na cidade. Seus aspectos políticos e culturais são agora estudados e debatidos. A política convencional também desperta para a cultura popular das periferias. O artigo lembra dois encontros ocorridos entre Lula e Valesca Popuzada, nos anos de 2008 e 2009. Oportunidade para a funkeira entregar ao então presidente uma letra de música que fala da favela, do funk, dos jovens e até da possibilidade de ser ministra da Educação. O artigo discute a intromissão das vozes femininas dos funks sensuais na vida das cidades como agenciamento politicamente significativo através das interpelações que produz. Na tradição dos estudos culturais, se propõe a problematizar o poder através também da criação popular no circuito da cidade.

 
Valesca Popozuda, Minister of Education
abstract 

The so called sensual funk is part of the juvenile culture in Rio de Janeiro. Valesca Popozuda is one of its main stars, widely known through different media. The female voices from the funk call attention for lyrics that narrate achievements and fantasies that clash from the images destined for women. These voices present existences repressed by phallocentrism, prevailing on narratives about love, sex and life in the city. Their political and cultural aspects have been recently studied and debated. Conventional politics has also aroused for the popular culture from peripheries. The article reminds two moments when Lula and Valesca Popozuda met each other in 2008 and 2009. Two situations that created the opportunity for her to give to the president (at that time) lyrics that discussed the slums, funk, youth and still the possibility for her being the Ministry of Education. The article discusses the intromission of the funk female voices from sensual funks in the life of cities as a significant politically agency through the produced interpellations. Throughout the tradition of Cultural Studies, the article aims at problematizing power through a popular creation on the city circuit.

 

Metrô e Morro do Alemão

Ao entrar no vagão não esperava uma viagem diferente das outras, em um trajeto que faço com alguma frequência. Aconteceu, no entanto, de três garotas cruzarem a fronteira que separa a música de cada um – aquela que ouvimos sozinhos, com o fone no ouvido. Música alta no metrô. O pancadão chamou minha atenção, enquanto os outros passageiros pareciam mais acostumados com a audição invasora. Não sei quantos estavam gostando ou não, mas ninguém reclamou. O funk de letras sexuais desenhava formas de amar, vivas e atrevidas. Na primeira canção, uma voz masculina, na seguinte uma voz feminina. Uma voz que logo reconheci. O trem seguia seu rumo sem variantes (o trilho), enquanto a presença descarada das garotas funkeiras provocava com a música que ouviam (a trilha) em alguns, imagino, fantasias, e, talvez, em outros, indiferença. Para mim, Valesca Popozuda aparecia como uma mulher virtual, ali onde eu não poderia pensar. Sonora e pictográfica, um holograma que poderia prender a atenção mais do que a curva acentuada feita pelo trem. Parece, prendeu a atenção do presidente Lula também.

Conheci o Lula no Complexo do Alemão,
E ele não tirou o olho do meu popozão
Com todo respeito, senhor presidente,
O senhor gostou de mim, e o seu olhar não mente
Mas, senhor presidente, meu papo é outro
Sou popozuda e represento a voz do morro

Luis Inácio é do povo, e escuta o que ele diz
A favela tem muita gente, que só quer é ser feliz
Que Dilma que nada! Me leva pra Casa Civil
Vou por o som na caixa e balançar o quadril
O funk não é problema, para alguns jovens é a solução
Quem sabe algum dia viro ministra da Educação.

Valesca encontrou Lula no final de 2008, no Complexo do Alemão e depois, em fevereiro de 2009 em Manguinhos[1][1] Cf. EM ENSAIO, Valesca Popozuda posa nua com foto de Lula. Disponível em: www.estadao.com.br/noticias/nacional,em-ensaio-valesca-popozuda-posa-nua-com-foto-de-lula,389386,0.htm. Acesso em: 29 mar. 2013., quando entregou para o presidente, durante a inauguração de uma escola, a letra da música feita para ele, motivo para uma curiosa observação feita pela revista Playboy[2][2] Cf. edição especial Revista Plaboy, São Paulo, n. 409-A, p.1, jun.2009., no número especial dedicada à funkeira: “Desde os tempos de Getúlio Vargas e da vedete Virgínia Lane não se via tamanha intimidade entre um presidente e uma artista popular”. Playboy reproduz duas imagens desses encontros, fotos que podem ser encontradas na web também. Um gravação da música, realizada após o segundo encontro, pode ser ouvida no YouTube.[3][3] Disponível em: www.youtube.com/watch?v=7S9wDJZSpz8. Acesso em: 29 mar. 2013. O motivo desse artigo não é a expertise política do presidente (tentem imaginar FHC ou José Serra face a face com a funkeira...), mas a música de Valesca, que alcança mesmo aqueles que não selecionaram suas canções para ouvir. Pode ser o usuário do metrô ou a Presidência da República. Música que muitos não querem mesmo por perto, de modo algum. Os funks sensuais, no entanto, kama sutra popular, como os corpos do amor que suas músicas cantam, entram em todos os cantos, rompendo o selo das proibições.

Muitas vezes, conversando sobre funk nas minhas aulas de Currículo ou Estudos Culturais, é comum alguém observar que os funks já foram mais críticos da sociedade, que agora só têm letras que falam sobre sexo e com a própria mulher degradando sua imagem. São lembrados, por exemplo, o Rap do Silva[4][4] Letra e áudio da canção disponíveis em letras.mus.br/mc-marcinho/295798/. Acesso em: 20 mar. 2013. e o Rap da Felicidade[5][5] Letra e áudio da canção disponíveis em letras.mus.br/cidinho/194419/. Acesso em: 23 mar.2013. .

2001 pode ser considerado o ano da “virada linguística” do funk. Na voz do Bonde do Tigrão, agora é assim: “Tchu-tcuuuuucaaaa, vem aqui pro seu tigrão/ vou te jogar na cama e te dar muita pressão”[6][6] Letra e áudio da canção disponíveis em letras.mus.br/bonde-do-tigrao/100190/. Acesso em: 23 mar.2013.. Para o funk, na cidade do Rio de Janeiro, o milênio começa mais erótico (ESSINGER, 2005; LOPES, 2011). No entanto, não creio que a “política” desapareceu do funk. Outros personagens entram em cena e a própria estética do funk adquire outras significações políticas. Esse é o caminho que vamos seguir nesse artigo. Com os funks sexuais, outras vozes passam a cantar mais alto também. Diz Silvio Essinger (2005, p. 216) no seu livro Batidão: “Até 2001, raríssimas eram as figuras femininas no funk carioca”. Então é importante destacar que o “Funk do Lula” é uma letra feminina para o presidente. Ou seja, uma questão de gênero e, como tal, um agenciamento político.

De quem é a música ?

Observando os dois extratos abaixo, de duas poesias funk, você seria capaz de encontrar alguma diferença significativa entre os textos?

Líquido do amor

Na cama ou no sofá no chão em qualquer lugar gata eu vou
Te amar
Te abraçar te acariciar te beijar (...)
Vai sentir prazer
Vou ficar dentro de você a gente vai enlouquecer[7][7] Letra completa e áudio disponíveis em letras.mus.br/mc-catra/948557/. Acesso em: 29 mar. 2013.

Cardápio do amor

Cardápio do amor tu tem que saborear
com vários tipos de delícias você tem que provar
Se pedir café completo tu vai comer todinho
com chantilly nesse corpinho vou lamber ele todinho

Os dois extratos recortados não seriam suficientes para identificar alguma diferença marcante entre as canções. Mas a continuação de Cardápio do amor deixaria à vista uma singularidade: “na hora da refeição se tiver sua carne/prepare o seu espeto e sua linguiça pra mais tarde”[8][8] Letra completa e áudio disponíveis em letras.mus.br/tati-quebra-barraco/147074/. Acesso em: 29 mar. 2013. . Agora é possível perceber que se trata de uma voz feminina que canta (na verdade, apenas podemos imaginar que é feminina...). Mas é a audição das duas músicas que não deixaria dúvidas entre o cantor e a cantora: Mr. Catra e Tati Quebra-Barraco. Eu sei que para muitas pessoas, mesmo assim, não haveria diferença alguma. As duas músicas seriam imprestáveis. Mas o fato é que são dois artistas populares, suas performances são conhecidas e cultivadas por milhares de pessoas. Como educador, é esse aspecto do popular, nas culturas midiáticas e juvenis, o que me interessa para sondar a nossa época e suas possibilidades. “Época enfim”, como diz Maffesoli (2009, p. 12), “que considera que o desenvolvimento do festivo e do lúdico não mais é apenas um lado frívolo da existência, mas seu elemento essencial”.

As vozes femininas no funk orgiástico tecem novas visibilidades. Não é apenas considerar que o som do funk se multiplica. Também outras imagens se realizam, através de formas, movimentos e cores que entram na cena do amor, da rua e da cidade. Espaços são redesenhados com as presenças das garotas funkeiras que cantam (e contam) fantasias, que antes só apareciam, pública e midiaticamente, nas vozes masculinas. Presenças dotadas de capacidades que desvirtuam o suposto caráter personalizado das narrativas de gênero: não são apenas elas que fulguram em suas canções, mas todos que, de algum modo, são tocados e acariciados quando são ouvidas. Replicam-se masculinidades (afinal, também em suas falas, os falos aparecem aos montes), contaminam e infiltram o sexo com vivências que muitos rapazes denegam existir, mas vivem. Lembrando Rancière (2009, p. 16), “Recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo o tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência”.

Quando as garotas do funk trocam de posição, cantando, mais do que a inversão do lugar, existe uma partilha: “A partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce” (RANCIÈRE, 2009, p. 16). O funk é uma criação referida à diáspora africana na América e no Brasil está estreitamente relacionado às lutas das juventudes das periferias, destacadamente dos negros, pela participação ativa no cotidiano das cidades, narrando suas vidas, exigindo direitos e reclamando liberdades. Uma vívida prática política, popular, que conjuga concepções a respeito da existência com incisivas manifestações artísticas nos espaços (que disputa) da cidade. Em uma pequena fórmula: funk = tomar parte da cidade. “Fusão da arte com a vida” (RANCIÉRE, 2009, p. 11) que as funkeiras enredam, cada vez mais, nos salões dos bailes ou nas ruas, trançando seus corpos com as ambições possíveis da nossa época e os devaneios que também querem tempos mudados. Garotas que sonham na altura das suas vozes com prazeres comuns, mas denegados para elas.

Funk do Lula

Mas não foi um funk sensual que Valesca fez para o presidente. Embora não tenha deixado de representar o papel de mulher gostosa e perigosa, quando diz: “ele não tirou o olho do meu popozão”, “o senhor gostou de mim, e o seu olhar não mente”, “que Dilma que nada! Me leva pra Casa Civil” e “vou por o som na caixa e balançar o quadril”. Contudo, é importante observar como essas imagens são construídas na poesia. Elas servem para reafirmar uma identidade de gênero (a voz feminina), mas desacomodam a visão dócil do par homem-mulher. Valesca desarma o olhar do presidente, constituído por uma dupla miragem do poder. Primeiro, o poder público masculino de percorrer sem censura o corpo feminino. Depois, o “olho do poder”, a vista privilegiada do mando – no caso, da presidência –, de escolher sobre a partilha do seu governo (a ministra Dilma, hoje presidenta). Narrando publicamente a cobiça do presidente e comunicando sua própria ambição de poder, Valesca propõe ocupar o lugar de outra mulher escolhida pelo presidente. Entrega para ele, como um manifesto, um documento político em que afirma um poder maior do que o simplório poder de atrair a atenção para a sua bunda.

Valesca usa imagens masculinas do poder para inserir também sua própria voz: “Mas, senhor presidente, meu papo é outro” e “quem sabe algum dia viro ministra da educação”. Consciente que sua atração faz parte de um jogo de visibilidades que cotidianamente privilegia a figura masculina (imageticamente, homem = poder), Valesca interfere mudando a direção da “conversa”. Ela diz, “meu papo é outro”, papo de um dia virar ministra da educação. Para isso, faz uma inflexão também, em relação a sua própria imagem. Não para ficar mais parecida com Dilma ou outra figura feminina na escala (da) do poder: “sou popozuda e represento a voz do morro”. Aqui “popozuda” é uma identificação menos genérica com a ideia de “mulher boa” e mais próxima da assunção de uma representação popular. O recurso da linguagem é lembrado como uma identificação sobre a alteridade da sua voz, “voz do morro”. Fala que não diz sobre sua origem, mas sobre sua presença, ou seja, sua voz adquire a fidelidade da representação do lugar onde é especialmente apreciada e querida. É desse lugar, de artista popular, que propõe ser, quem sabe um dia, “ministra da Educação”.

Na política atual, o que causa arrepio não é o fato de uma artista ameaçar ser ministra (existem precedentes, do sexo masculino, no executivo e no legislativo de vários países), mas de ser uma artista popular do funk querendo ser ministra da educação, quando sua música é comumente retratada como pornográfica e sem valores.

Declaração que Valesca sabe, no entanto, expor deixando o “rei nu”: “Luis Inácio é do povo, e escuta o que ele diz”. Se “Luiz Inácio” chegou lá, o presidente sem curso superior, muitas vezes “acusado” de não ter um lido um livro, por que ela não?! A legitimidade do presidente não está na sua ilustração (diferente de FHC, “príncipe da sociologia”), mas na sua reconhecida articulação com as camadas populares, em razão da sua própria origem social e trajetória de líder sindical. Quando diz, “que Dilma que nada”, não se refere a uma simples troca de mulheres no ministério. Dilma não é como ela e o próprio presidente, que são “populares”[9] [9] Embora, como integrante de organizações que participaram da luta armada durante a ditadura militar, o que a levou a prisão, Dilma não tem a sua figura comumente associada hoje às lutas populares, senão através das suas políticas sociais como presidenta. Quem sabe, mais tarde, lado a lado, Valesca e Dilma possam ser associadas como personagens das lutas femininas no Brasil contemporâneo, entre tantas outras mulheres.. A poesia funk de Valesca é também, assim, um documento de identidade[10][10] Aqui estou me apropriando do título de um livro de Tomas Tadeu da Silva (1999) Documentos de identidade., um posicionamento político a respeito do universo social que faz parte e das suas demandas, que serão apresentadas na música.

Apesar da sugestão e aparência, “Funk do Lula” não é exatamente uma homenagem ao presidente. É bem mais do que isso. Se para o presidente, candidato à reeleição na época, contar com o cumprimento de uma artista do funk em suas visitas eleitorais a comunidades populares é algo gratificante do ponto de vista eleitoral, para sua interlocutora foi oportunidade para uma ação política. . “Funk do Lula” não é, portanto, uma correspondência privada com o presidente, mas uma música e, como tal, destina-se a uma audiência mais ampla. Não se trata ainda, de um documento reivindicatório dirigido a uma autoridade. Não existe a expectativa de algum retorno do presidente. Trata-se sim de um diálogo com a própria cidade, a respeito do lugar do funk e das comunidades populares na vida urbana: “A favela tem muita gente, que só quer é ser feliz”[11][11] Valesca faz aqui uma citação de um funk clássico na cidade do Rio de Janeiro, o Rap da Felicidade: “Eu só quero é ser feliz, / Andar tranquilamente na favela onde eu nasci.” Ver nota 5. e “O funk não é problema; para alguns jovens é a solução”. A estigmatização das favelas e também do funk é conhecida. . Fazer uma canção para o presidente foi, nesse caso, posicionar-se sobre preconceito recorrente, presente nas mídias, nas políticas governamentais e nos espaços públicos. De música degenerada, Valesca faz do funk uma mídia política e cultural, afirmativa da expectativa (“só quer é ser feliz”) e do gosto popular (a lembrança dos jovens).

Ministra da Educação

De forma mais explícita do que em outras canções, em “Funk do Lula” Valesca contextualiza sua arte. Não faz isso procurando uma localização terminal (SILVA, 1996), que finalizaria sua poesia em uma identidade de periferia e marginal, impermeável e territorialmente contida. Valesca não fala com o presidente como uma personagem “popular” no sentido de pertencer a uma massa genérica, sem identificação. Tal como acontece com os “populares” quando são cumprimentados por políticos nas ruas e em outros locais públicos. A funkeira é uma personalidade, não apenas do funk, das favelas e bairros populares. Sua música cruza a geografia da cidade, com impactos variáveis, mas sem barreiras que possam impedir sua passagem. As diversas mídias e as trocas culturais jogam lenha na fogueira do funk, aumentando seu calor e ardência. “Funk do Lula” não pede uma ajuda do presidente. Mas se o encontro com o presidente foi uma oportunidade de promoção pessoal e Valesca não deixou de tirar esse proveito[12][12] O encontro com o presidente é a primeira narrativa que aparece no número especial da Revista Playboy dedicada a Valesca Popozuda. As dezenas de fotos da funkeira tiveram como cenário o Complexo do Alemão e a Morro da Rocinha. Ver nota n. 2., fez isso afirmando a pluralidade da cidade (“o funk não é problema”) e a própria necessidade de dividir o comum (“para alguns jovens é a solução”).

Quando Rancière (2009, p. 15) diz, “denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comume dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas”, vislumbramos, no caso do funk e de outras manifestações populares, a cidade como experiência elementar e vital da partilha como intromissão política e realização estética. Desnudar o comum e, ao mesmo tempo, descortinar as linhas que nos separam na cidade, é um agenciamento simultaneamente político e artístico, uma vez que aqui são visibilidades/conhecimentos que se expressam através de corpos, ritmos e narrativas que presentificam as fraturas, segmentações e exclusões que fixam nas superfícies da cidade e também nas suas sombras, o legal e o ilegal, o apresentável e aquilo que não poderá ser mostrado, o recomendável e o censurável, enfim, o querido e o detestável. O funk, como realização estética, incomoda pelo que mostra e diz. Como poesia sua superficialidade é também sua clarividência, porque do jeito que fala a vulgaridade da palavra é uma voz que alcança nossos recalques, protegidos nos consentimentos desiguais e regulados da cidade.

Tanto quanto os palavrões, as fantasias e os orgiasmos que narra em outras canções, falar no Funk do Lula do virtual desejo de ser ministra da educação causa constrangimentos e perplexidades. Como uma adepta da “putaria” poderia ser ministra da educação? O que seria ensinado agora nas escolas? Isso só poderia ser uma brincadeira. Não, não é. Evidentemente, não em razão da sua vida pregressa, mas observando como tal anúncio figura na canção, não é isso, ser “ministra da educação”. Como escreveu Manuel de Barros (2010, p. 395), “li uma vez que a tarefa mais lídima da poesia é a de equivocar o sentido das palavras”. O vago “quem sabe algum dia viro ministra da educação” é um confronto com o estabelecido a respeito dos lugares e dos destinos sociais. Como acontece a recepção do funk nas escolas?[13][13] Já existe o uso escolar dos funks, inclusive como proposta pedagógica oficial em redes públicas. Através do conceito de governamentalidade, de Foucault, é possível discutir como práticas curriculares incluem o funk na “arte de governar”. Cf. Berino (2007). Como acontece sua perseguição no cotidiano escolar ou de que maneira está entrando no currículo? E a presença feminina, como se estabelece a partir dos costumes e tradição na vida das escolas? O que está mudando e por quê? O que está em jogo, na canção, não é a vontade de Valesca ser ministra, mas, a visibilidade do funk e das garotas, o que é permitido, o que está proibido?

My pussy é o poder

Na cama faço de tudo
Sou eu que te dou prazer
Sou profissional do sexo
E vou te mostrar por que

My-my pussy é o poder
My-my pussy é o poder

Mulher burra fica pobre
Mass eu vou te dizer
Se for inteligente pode até enriquecer

My-my pussy é o poder
My-my pussy é o poder

Por ela o homem chora
Por ela o homem gasta
Por ela o homem mata
Por ela o homem enlouquece

Dá carro, apartamento, joias, roupas e mansão
Coloca silicone
E faz lipoaspiração
Implante no cabelo com rostinho de atriz
Aumenta a sua bunda pra você ficar feliz

Você que não conhece eu apresento pra você
Sabe de quem tô falando?

My-mu pussy é o poder
My-my pussy é o poder

Mulher burra fica pobre
Mas eu vou te dizer
Se for inteligente pode até enriquecer

My-my pussy é o poder

Rasta no chão, rasta no chão, rasta que rasta que rasta... [14][14] Letra completa e áudio disponíveis em letras.mus.br/gaiola-das-popozudas/1666564/. Acesso em: 29 mar. 2013.

Percorrendo outras canções de Valesca, encontramos uma fixação pelo poder que não deixa fugir – nem fingir – o que pretende. My-my pussy é o poder é uma dessas canções. O refrão é repetido várias vezes. Novamente através de Manuel de Barros (2010, p. 300), “Repetir repetir – até ficar diferente. /Repetir é um dom do estilo”. Dizer várias vezes sobre a magnitude (e o magnetismo...) sexual do poder mais do que reafirmar a atração que pussy exerce, submetendo e enlouquecendo homens, Valesca propõe encarar de frente, no campo cultivado pelo falocentrismo, as disputas que decidem vantagens, destaques e privilégios para homens. Na verdade, conto de fadas sobre atributos masculinos que hoje o funk sensual das meninas coloca no devido lugar da partilha, das trocas e correspondências, sem concessões para prazeres exclusivos e as narrativas solitárias do gozo. Agora é “pau a pau”, pussy também manda e os encontros devem negociar as respectivas capacidades, de entreter e ceder, de mandar e se submeter, de amar e ser amado. O estilo do funk é dialógico, coloca em jogo as diferenças historicamente construídas e embaralha as cartas: dançarinas viram cantoras e os rapazes também são dançarinos. Com as meninas entrando na cena, no funk o sexo é mais contaminação dos gêneros do que identidades finalizadas em uma transa banal.

A discussão sobre as significações dos funks sensuais constitui uma polêmica entre pesquisadores e pesquisadoras. Kate Lira (2006, p. 189) pergunta: “Qual o momento em que o sexual vira também político?”. E responde: “As mulheres de hoje em dia querem até mais que as gerações anteriores. Querem a liberdade de serem objetos e sujeitos sexuais” (2010, p. 190). Adriana Carvalho Lopes (2011, p. 168), por outro lado, indaga: “vale a pena destacar até que ponto ‘falar de sexo’ é sinônimo de resistência, ou, ao contrário, é uma das alternativas impostas pelo próprio mercado funkeiro às mulheres”. Ou seja, até que ponto as meninas do funk não estariam constrangidas, nas suas carreiras, a cantar funks sensuais no lugar de exibir outras produções, diante das pressões de empresários do setor. Mercado de empresários que, no entanto, pode variar de preferências: “O pessoal de fora está vendo que o funk não é só mais montagem[15][15] Cf. Lopes (211, p. 157): “O funk-montagem ou apenas ‘montagem’ refere-se às mixagens de ritmos e melodias produzidas pelos DJs em uma bateria eletrônica”. e palavrão, hoje em dia ele tem letra e melodia — diz o empresário e mentor de Koringa[16][16] MC Koringa, artista que teve uma canção, Pra Me Provocar, incluída na trilha sonora de uma novela da Rede Globo, Avenida Brasil. Vídeo disponível em:www.youtube.com/watch?v=FG2buAsFJj4. Acesso em: 29 mar. 2013., o DJ Alex Bolinha” (ESSINGER, 2005).

Não existe, creio, uma interpretação definitiva, unidimensional e correta sobre o que são os funks sensuais como fatos sociais. São narrativas e práticas abertas oportunas para discussões sobre gênero e pós-gênero e também a respeito da cidade e da vida nas escolas. Sobre as juventudes, no plural. Entre outros são assuntos possíveis de se percorrer a partir das vozes femininas do funk. No entanto, não existe uma verdade a ser revelada a respeito do que significam. Narrativas populares têm a lucidez dos propósitos das descobertas plurais e das solidariedades praticadas como invenções. Em outro artigo (a ser escrito mais tarde) pretendo me deter de forma mais elaborada nos debates sobre a recepção dos funks sensuais nos movimentos sociais[17][17] Diz um manifesto assinado por MCs e Djs, em 2008: “Sob o comando monopolizado de poucos empresários, a indústria funkeira tem uma dinâmica que suprime a diversidade das composições, estabelecendo uma espécie de censura no que diz respeito aos temas das músicas. Assim, no lugar da crítica social, a mesmice da chamada ‘putaria’, letras que têm como temática quase exclusiva a pornografia”. Cf. MANIFESTO do Movimento Funk é Cultura. Disponível em: www.observatoriodefavelas.org.br/userfiles/file/manifesto1.pdf. Acesso em: 5 abr. 2013. e também na universidade. Aqui gostaria apenas de afirmar sua relevância como política e cultura, em razão das mobilizações que agita e das repercussões nas mídias e na vida de tantos jovens. Isso é suficiente para aquisição de relevância como motivo para pesquisas e consideração como prática cultural. Precisamos, de um modo geral, ser mais delicados e curiosos quando o assunto for a “cultura popular” hoje.

Iniciei esse texto com uma epígrafe, citando Stuart Hall. Trata-se de uma pergunta sobre a centralidade da cultura na contemporaneidade. A apreciação das propriedades sociológicas que caracterizam o capitalismo tardio nos ajuda a compreender porque, agora, estamos sempre falando de cultura. Isso acontece, especialmente, quando nos detemos nas tensões referidas ao encontro das populações, entre sociedades diversas e no interior de cada uma delas. Cultura é uma palavra que nos dá alguma esperança para entender um mundo que mostra cenários transformados com velocidade, que tumultuam nossas crenças, valores e expectativa de algum sossego ao longo da vida. Através da palavra “cultura” procuramos alguma calma para entender o que se passa. É como usar um guarda-chuva quando o tempo fica ruim. Mas, contraditoriamente, trata-se de uma palavra descontrolada. É também com esse guarda-chuva nas mãos que tomamos os maiores sustos. Quando a chuva aperta, tentamos não nos molhar, procuramos um abrigo maior que o nosso guarda-chuva. É o que acontece quando tentamos dizer que algumas coisas são mais culturais que outras. Mas, nas cidades, as chuvas têm aumentado, piorando muito o tempo. Ouvi dizer que precisamos é de outra ecologia, para uma vida melhor.

Patronesse

Uma turma do curso de Estudos de Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF) convidou Valesca para ser patronesse na formatura. Uma das formandas explica porque patronesse: "O funk é muito forte no Rio de Janeiro e a melhor forma de fazer uma homenagem a esse movimento, e a tudo que ele representa como música e cultura, é colocando uma das funkeiras mais polêmicas e representativas".

Valesca, madrinha de uma turma de formandos de um curso de graduação de uma universidade federal, já está mais próxima doMEC...

notas de rodapé

 
[1] Cf. EM ENSAIO, Valesca Popozuda posa nua com foto de Lula. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,em-ensaio-valesca-popozuda-posa-nua-com-foto-de-lula,389386,0.htm>.  Acesso em: 29 mar. 2013.
[2] Cf. edição especial Revista Plaboy, São Paulo, n. 409-A, p.1, jun.2009.
[3] Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=7S9wDJZSpz8. Acesso em: 29 mar. 2013.
[4] Letra e áudio da canção disponíveis em<: http://letras.mus.br/mc-marcinho/295798/>. Acesso em: 20 mar. 2013.
[5] Letra e áudio da canção disponíveis em<: http://letras.mus.br/cidinho/194419/>. Acesso em: 23 mar.2013.
[6] Letra e áudio da canção disponíveis em<:  http://letras.mus.br/bonde-do-tigrao/100190/>. Acesso em: 23 mar.2013.
[7] Letra completa e áudio  disponíveis em <: http://letras.mus.br/mc-catra/948557/>. Acesso em: 29 mar. 2013.
[8] Letra completa e áudio disponíveis em: :< http://letras.mus.br/tati-quebra-barraco/147074/>. Acesso em: 29 mar. 2013.
[9] Embora, como integrante de organizações que participaram da luta armada durante a ditadura militar, o que a levou a prisão, Dilma não tem a sua figura comumente associada hoje às lutas populares, senão através das suas políticas sociais como presidenta. Quem sabe, mais tarde, lado a lado, Valesca e Dilma possam ser associadas como personagens das lutas femininas no Brasil contemporâneo, entre tantas outras mulheres.    
[10] Aqui estou me apropriando do título de um livro de Tomas Tadeu da Silva (1999) Documentos de identidade.
[11] Valesca faz aqui uma citação de um funk clássico na cidade do Rio de Janeiro, o Rap da Felicidade: “Eu só quero é ser feliz, / Andar tranquilamente na favela onde eu nasci.” Ver nota 5.
[12] O encontro com o presidente é a primeira narrativa que aparece no número especial da Revista Playboy dedicada  a Valesca Popozuda. As dezenas de fotos da funkeira tiveram como cenário o Complexo do Alemão e a Morro da Rocinha. Ver nota n. 2.
[13] Já existe o uso escolar dos funks, inclusive como proposta pedagógica oficial em redes públicas. Através do conceito de governamentalidade, de Foucault, é possível discutir como práticas curriculares incluem o funk na “arte de governar”. Cf. Berino (2007).
[14] Letra completa e áudio disponíveis em <: http://letras.mus.br/gaiola-das-popozudas/1666564/>. Acesso em: 29 mar. 2013.
[15] Cf. Lopes (211, p. 157): “O funk-montagem ou apenas ‘montagem’ refere-se às mixagens de ritmos e melodias produzidas pelos DJs em uma bateria eletrônica”.
[16] MC Koriga, artista que teve uma canção, Pra Me Provocar, incluída na trilha sonora de uma novela da Rede Globo, Avenida Brasil. Vídeo disponível em:< http://www.youtube.com/watch?v=FG2buAsFJj4>. Acesso em: 29 mar. 2013.
[17] Diz um manifesto assinado por MCs e Djs, em 2008: “Sob o comando monopolizado de poucos empresários, a indústria funkeira tem uma dinâmica que suprime a diversidade das composições, estabelecendo uma espécie de censura no que diz respeito aos temas das músicas. Assim, no lugar da crítica social, a mesmice da chamada ‘putaria’, letras que têm como temática quase exclusiva a pornografia”. Cf. MANIFESTO do Movimento Funk é Cultura. Disponível em: <http://www.observatoriodefavelas.org.br/userfiles/file/manifesto1.pdf>. Acesso em: 5 abr. 2013.

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