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  • editorial
  • sobre os autores
  • Funk ostentação em São Paulo: imaginação, consumo e novas tecnologias da informação e da comunicação

    Funk ostentação em São Paulo: imaginação, consumo e novas tecnologias da informação e da comunicação

    por 
    Alexandre Barbosa Pereira
    resumo 
    O artigo aborda a configuração recente de um movimento musical, protagonizado principalmente por jovens de origem pobre, em São Paulo, o funk ostentação. A partir da pesquisa em casas noturnas e da observação de videoclipes na internet, explora-se a importância das referências a marcas de diferentes produtos e bens de valor elevado e a imagem como componente fundamental para a apresentação e divulgação desse estilo musical. Nesse circuito funk, a proposição de Arjun Appadurai sobre a centralidade do deslocamento pelas migrações e novas tecnologias da comunicação mostra-se como um caminho importante para se refletir sobre esse funk a partir da ideia de imaginação.
  • Marcos fundamentais da Literatura Periférica em São Paulo

    Marcos fundamentais da Literatura Periférica em São Paulo

    por 
    Antonio Eleison Leite
    resumo 
    A literatura da periferia de São Paulo se divide em dois períodos históricos: a) Literatura Marginal, de 2000 a 2005 e b) Literatura Periférica, a partir de 2005 até os dias atuais. A primeira fase teve como marco inaugural a publicação do livro Capão Pecado, de Ferréz, no ano 2000, obra muito influenciada pela cultura hip hop, especialmente o RAP. Este escritor foi o principal nome dessa fase, sendo também seu maior articulador, ao coordenar inúmeras coletâneas literárias que proporcionaram o surgimento de dezenas de autores. O segundo período é marcado pela ascensão dos saraus, principalmente do Sarau da Cooperifa. Este Coletivo publicou sua antologia em 2005 e estimulou diversos saraus a fazerem o mesmo. Viabilizados, em boa parte, por políticas públicas, perto de 200 livros, coletivos e individuais, foram lançados desde então, configurando um vigoroso movimento cultural. Entretanto, passados 12 anos, a rubrica periférica e/ou marginal se mostra insuficiente para identificar essa prática literária. Este artigo apresenta duas hipóteses para superação desse problema. A primeira é contextualizar a literatura periférica como uma dimensão da cultura popular urbana, ampliando assim o seu alcance como expressão cultural, sem prejuízo da sua identificação de origem. A segunda é de ordem estética e implica na afirmação da busca da qualidade como um imperativo da criação. Esse desafio, porém, requer, por parte dos escritores, uma disposição para se submeterem à crítica, ao mesmo tempo em que torna-se necessário um novo paradigma crítico que possa responder à especificidade dessa literatura.
  • Estudios culturales en América Latina

    Estudios culturales en América Latina

    por 
    Eduardo Restrepo
    resumo 
    Duas grandes confusões parecem operar, com frequência, nos discursos em torno dos estudos culturais na América Latina. A primeira é a equivalência de estudos culturais e estudos sobre a cultura. A segunda, muito frequente no contexto estadunidense, é misturar sob o rótulo de estudos culturais a produção heterogênea de intelectuais latino-americanos que abordaram assuntos de cultura e poder e a de acadêmicos latino-americanistas das universidades do Norte. Neste artigo se evidenciam os problemas de ambas as confusões e se sublinham algumas de suas nefastas consequências para a articulação de um projeto intelectual e político de estudos culturais na América Latina.
  • Valesca Popozuda: ministra da Educação

    Valesca Popozuda: ministra da Educação

    por 
    Aristóteles Berino
    resumo 
    Os chamados funks sensuais fazem parte da cultura juvenil da cidade do Rio de Janeiro. Valesca Popozuda é uma das suas principais estrelas, amplamente conhecida através das mídias. As vozes femininas do funk chamam atenção pelas letras que narram façanhas e fantasias que destoam da imagem que são destinadas ao sexo feminino. São vozes que que presentificam existências recalcadas pelo falocentrismo dominantes nas narrativas sobre o amor, o sexo e a vida na cidade. Seus aspectos políticos e culturais são agora estudados e debatidos. A política convencional também desperta para a cultura popular das periferias. O artigo lembra dois encontros ocorridos entre Lula e Valesca Popuzada, nos anos de 2008 e 2009. Oportunidade para a funkeira entregar ao então presidente uma letra de música que fala da favela, do funk, dos jovens e até da possibilidade de ser ministra da Educação. O artigo discute a intromissão das vozes femininas dos funks sensuais na vida das cidades como agenciamento politicamente significativo através das interpelações que produz. Na tradição dos estudos culturais, se propõe a problematizar o poder através também da criação popular no circuito da cidade.
  • Rolezinhos: Marcas, consumo e segregação no Brasil

    Rolezinhos: Marcas, consumo e segregação no Brasil

    por 
    Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco
    resumo 
    No início de 2014, o fenômeno conhecido como rolezinho ganhou ampla visibilidade nacional e internacional. Trata-se de adolescentes das periferias urbanas que se reúnem em grande número para passear nos shopping centers de suas cidades. O evento causou apreensão nos frequentadores e fez com que alguns proprietários dos estabelecimentos conseguissem o direito na justiça de proibir a realização dos rolezinhos, barrando o acesso dos jovens. Desde então, emergiu um amplo debate sobre segregação na sociedade brasileira. Com base em uma pesquisa etnográfica sobre consumo popular com jovens da periferia de Porto Alegre, o artigo analisa o fenômeno dos rolezinhos, abordando suas dimensões locais, nacionais e globais. Levando em consideração o atual momento brasileiro, que versa sobre políticas de ascensão social via consumo e sobre uma onda de protestos de inquietação social, argumentamos que os rolezinhos estão se modificando e encontrando diversas formas de discutir e realizar política cotidiana no âmago de uma sociedade segregada.
  • Matriz biológico-cultural da existência humana: fundamentos para aprender, ensinar e educar

    Matriz biológico-cultural da existência humana: fundamentos para aprender, ensinar e educar

    por 
    Maria Elena Infante-Malachias
    resumo 
    Neste ensaio apresentamos uma reflexão sobre a matriz biológico-cultural da existência humana a partir da epistemologia da Biologia do Conhecer, que considera o conhecimento a partir do sujeito que conhece. A matriz que constitui o cerne da Biologia Cultural corresponde à trama relacional onde o homem surge se realiza e conserva o seu viver humano. Nesta trama relacional que se inicia em um processo histórico que teve a sua origem há bilhões de anos, surgem todos os mundos que vivemos como as distintas dimensões do nosso viver cultural. Discutimos a relevância desta perspectiva, que considera ao mesmo tempo a constituição biológica e a cultura, para as relações humanas do ensinar e aprender e destacamos a possibilidade de transformação que surge ao considerar o outro como um legítimo outro na convivência.
  • Ethnical Afro Tourism in Brazil

    Ethnical Afro Tourism in Brazil

    por 
    Luiz Gonzaga Godoi Trigo e Alexandre Panosso Netto
    resumo 
    O artigo desenvolve uma discussão teórica sobre o turismo étnico afro no Brasil. A temática somente recentemente tem merecido a devida atenção dos estudiosos, motivo pelo qual se justifica a abordagem. Os objetivos são três: 1) revisar a história das culturas afros no Brasil; 2) identificar as forças que garantem o respeito a essas identidades e; 3) analisar como os destinos afro devem ser trabalhados neste contexto. A metodologia empregada é a revisão teórica dos textos que abordam a cultura afro brasileira, tendo como pano de fundo da discussão os delineamentos dos estudos culturais. Conclui-se que o produto turístico com base na cultura afro é um produto viável no Brasil, porém deve primar pelos quesitos de respeito, alteridade, ética e valorização de todas as culturas envolvidas no processo.
  • Alfabetização científica e cartográfica no ensino de ciências e geografia: polissemia do termo, processos de enculturação e suas implicações para o ensino

    Alfabetização científica e cartográfica no ensino de ciências e geografia: polissemia do termo, processos de enculturação e suas implicações para o ensino

    por 
    Veronica Guridi e Valeria Cazetta
    resumo 
    Neste trabalho realizamos uma análise crítica com relação ao significado do conceito “alfabetização científica” dentro do campo da Educação em Ciências e em Geografia. Constatamos que o termo é ainda bastante polissêmico e que dependendo do enfoque adotado, se seguem diferentes implicações para o ensino de Ciências. Concluímos mostrando uma definição do termo que incorpora elementos dos recentes estudos na área bem como da vertente dos Estudos Culturais em Educação.
  • A fome antropofágica - utopias e contradições

    A fome antropofágica - utopias e contradições

    por 
    Fernanda Oliveira Filgueiras Santos e Mauro de Mello Leonel
    resumo 
    O Modernismo no Brasil significou um marco, que anunciou o fim de um período cultural caracterizado pelo legado e pelo conservadorismo. O Movimento Antropofágico foi a síntese artística e intelectual dessas reflexões. Este trabalho se propõe a discutir as contribuições e controvérsias deixadas pelo movimento no contexto de urbanização e cosmopolitismo em que ele emergiu na cidade de São Paulo.
    palavras-chave 
  • A versão encantada da pós-modernidade

    A versão encantada da pós-modernidade

    por 
    Mauro de Mello Leonel e Maira Mesquita
    resumo 
    O livro em epígrafe tem como objetivo principal relatar com rigor cronológico as origens das versões de pós-modernidade ("não como idéia, mas como fenômeno"), remontando ao modernismo. Numa abordagem incomum o autor percorre, no tempo e nas circunstâncias, as dimensões estéticas, históricas e políticas da express
  • Dossiê "Temporalidades"

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  • Temporalidades

    Temporalidades

    por 
    Luiz Menna-Barreto e Mario Pedrazzoli
    resumo 
    Esta edição da Revista Estudos Culturais foi dedicada a estudos sobre o tempo, tema recorrente em diversas áreas do conhecimento e que vem adquirindo relevância crescente num mundo globalizado no qual as pessoas acabam se expondo a desafios inéditos até meados do século XX. Atravessamos fusos horários, acompanhamos bolsas de valores em Tóquio e Nova York e assistimos a jogos que ocorrem do lado oposto do planeta, numa sucessão de eventos que acontecem em tempos próprios e que nem sempre coincidem com os tempos de cada indivíduo. Surge nesse contexto certa tensão entre nossas percepções da passagem do tempo, aquela interna que dialoga com nosso sono ou fome e a outra externa, imposta pelos vários relógios aos quais tentamos obedecer. Dessa tensão emergem reflexões que trazemos aos leitores, reflexões inspiradas em diferentes olhares que vão desde aspectos filosóficos e sociológicos a aspectos biológicos.
  • Sobre os autores

    Sobre os autores

    resumo 
    Luiz Menna-Barreto, Mario Pedrazzoli, Robert Levine, Muara Kizzi Figueiredo, Rafael H. Silveira, Rafael Chequer Bauer, Alexandre Panosso Neto e Luiz Gonzaga Godoi Trigo escrevem no número dois da Revista de Estudos Culturais.
  • Ordem e progresso, aceleração e alienação

    Ordem e progresso, aceleração e alienação

    por 
    Rafael H. Silveira
    resumo 
    Como diversos exemplos dados em Aceleração e alienação [1] [1] ROSA, Hartmut. Beschleunigung und Entfremdung: Entwurf einer kritischen Theorie spätmoderner Zeitlichkeit. Traduzido do inglês para o alemão por Robin Celikates. Berlim: Suhrkamp Verlag, 2013. confirmam, a condição de especialista no campo da aceleração social muitas vezes não exime o próprio autor da ação dos fenômenos por ele analisados – sobretudo por se tratar de uma das personalidades acadêmicas mais conhecidas, citadas e requisitadas na imprensa alemã atualmente. Como minha resenha da análise de Hartmut Rosa mostra, a obra está longe de ser die Entdeckung der Langsamkeit ou um éloge de la lenteur, como interpretado por alguns. No diálogo, conduzido em 23/10/2014 na cidade de Jena, Alemanha, originalmente em alemão, transcrito, editado e traduzido para o português por Rafael H. Silveira, são abordados pontos que complementam o entendimento da Teoria da Aceleração através de uma perspectiva voltada para a realidade brasileira.
  • Tempo e bem estar

    Tempo e bem estar

    por 
    Robert Levine
    resumo 
    Neste artigo examino o impacto da experiência temporal – o emprego do tempo, concepções do tempo e normas temporais - sobre a felicidade e o bem estar; sugiro políticas públicas voltadas à ampliação dessa experiência. Inicio com uma revisão da literatura relativa às interrelações entre o tempo, dinheiro e felicidade. Em segundo lugar, reviso dados e questões em torno dos horários de trabalho e não trabalho ao redor do mundo. Em terceiro lugar, descrevo numa perspectiva mais ampla as questões temporal que deveriam ser levadas em consideração nas decisões de políticas públicas, por exemplo, medidas de relógio versus eventos, enfoques monocrônicos versus policrônicos, definições de tempo perdido, ritmo de vida e orientação temporal. Concluo com sugestões para a elaboração de políticas do emprego do tempo voltadas para aumentar a felicidade individual e coletiva. Trata-se de um truísmo virtual o modo como empregamos nosso tempo se expressa no modo como vivemos nossas vidas. Nosso tempo é o bem mais valioso do qual dispomos. Boa parte desse tempo, no entanto, é controlado por outros, desde nossos empregadores até nossos familiares mais próximos. Também está claro que existem diferenças profundas – individuais, sócio econômicas, culturais e nacionais – no grau de controle que indivíduos exercem sobre seus próprios tempos (ver p. exemplo LEVINE, 1997; LEE, et al., 2007). Pode ser argumentado que políticas públicas são necessárias para proteger os “direitos temporais” dos indivíduos, particularmente aqueles mais vulneráveis à exploração. Este artigo foi motivado por um projeto de largo espectro do qual tive a oportunidade de participar. O projeto começou na primavera de 2012 na sequência de uma resolução da ONU, aprovada por unanimidade em sua Assembleia Geral, na qual “felicidade” foi incluída na agenda global. O Butão foi convidado a receber um grupo interdisciplinar de “experts” internacionais com a tarefa de elaborar recomendações para incentivar a busca da felicidade no planeta; mais especificamente desenvolver um “novo paradigma para o desenvolvimento mundial”. O Butão é um pequeno país pobre, cercado de montanhas na região do Himalaia, foi escolhido para essa tarefa em função do pioneirismo de seu projeto de “Felicidade Nacional Bruta” - FNB (Gross National Happiness - GNH). “Progresso” na definição dos autores desse projeto, “deveria ser visto não apenas através das lentes da economia como também a partir de perspectivas espirituais, sociais, culturais e ecológicas”. Felicidade e desenvolvimento, em outras palavras, dependem em mais fatores do que o crescimento e acumulação de capital. Inglaterra, Canadá e outros países e organizações de dimensões nacionais seguiram na mesma direção do Butão, estabelecendo medidas de FNB (LEVINE, 2013). Um dos domínios centrais do índice de FNB do Butão é “emprego do tempo” que correspondeu à minha participação no relatório do grupo de estudo. Este artigo está bastante apoiado naquele relatório e nas inferências que o projeto me proporcionou. Discuto quatro conjuntos de temas: I. As interrelações entre tome, dinheiro e felicidade. Máxima importância, qual a relevância do emprego do tempo com o bem estar e a felicidade? II. Emprego do tempo: questão dos horários e políticas de organização do trabalho. III. Outors fatores tempais que devem ser considerados ao formularo políticas de promoção de felicidade.. IV. Sugestões para elaboração de políticas: a chamada para uma “Lei de Direitos Temporais”.
  • A ilusão dos relógios: uma ameaça à saúde

    A ilusão dos relógios: uma ameaça à saúde

    por 
    Mario Pedrazzoli
    resumo 
    A mecanicidade ou digitalidade dos relógios representa a imutabilidade da duração de frações de tempo. A contagem das 24h de um dia teve como referência, a princípio, as pistas ambientais associadas às condições do dia e da noite que são diferentes em diferentes locais da terra e portanto mutáveis. A emergência de uma sub-área da Biologia, a Cronobiologia, em meados do século XX permitiu a interpretação de que a apreensão do tempo de um dia como regularidade mecânica aliena os seres humanos da percepção da temporalidade diária como integração entre temporalidade ambiental e temporalidade biológica. Pretendo demonstrar que esse equívoco perceptual da duração do tempo de um dia pode ter como consequência uma desorganização temporal fisiológica que é a origem ou está associada a origem de muitas doenças modernas.
  • Os horários fora de lugar – ritmos biológicos e literatura

    Os horários fora de lugar – ritmos biológicos e literatura

    por 
    Muara Kizzy Figueiredo
    resumo 
    Este trabalho analisa a relação existente entre personagens e ambiente e objetiva investigar como, supostamente, se deu a implantação no Brasil do século XIX dos ritmos sociais europeus, tendo em vista os ritmos biológicos da população brasileira (em termos coletivos) – adaptada ao ambiente tropical. Para tal estudo, foram analisados alguns textos literários do período (em especial a obra de Machado de Assis e Eça de Queirós) - visando identificar menções aos horários de sono, refeições, atividades sociais e aspectos do sono; bem como a leitura de autores contemporâneos que discutem a construção de identidades nacionais – em especial no Brasil – e ainda; autores que investigam a temática do tempo – seja em termos cronológicos, psicológicos e biológicos.
    palavras-chave 
  • Slow movement: reação ao descompasso entre ritmos sociais e biológicos

    Slow movement: reação ao descompasso entre ritmos sociais e biológicos

    por 
    Rafael Chequer Bauer, Alexandre Panosso Netto e Luiz Gonzaga Godoi Trigo
    resumo 
    Este artigo discute o descompasso entre os ritmos biológicos e os ritmos sociais emergentes a partir da Revolução Industrial. Para tal, são apresentados indícios de mudanças rítmicas nas últimas décadas, acarretando um processo contínuo e profundo de aceleração e mecanização sociocultural, predominante nas estruturas societárias capitalistas. Em seguida, discute-se a relação entre ritmos sociais e ritmos biológicos, com a contribuição conceitual advinda da Cronobiologia. Por fim, destaca-se o processo de surgimento e consolidação do Slow Movement nas últimas décadas, tornando-se mais um indício da desarticulação temporal vivenciada nos dias atuais.
  • Os tempos da vida

    Os tempos da vida

    por 
    Luiz Menna-Barreto
    resumo 
    O tema do tempo tem atraído bastante atenção no ambiente acadêmico contemporâneo. Apresentarei uma abordagem na qual são associados os conceitos de condicionamento reflexo clássico com a cronobiologia, área na qual a dimensão temporal da matéria viva é explorada. O conceito de antecipação é proposto como elo central dessa associação. Discuto a seguir os níveis de determinação que podem ser propostos a partir da observação de fenômenos temporais nos organismos. Concluo com as noções de desafios e armadilhas temporais que parecem caracterizar fortemente os dilemas humanos num mundo globalizado, conduzindo a diferentes processos de adaptação resultantes desses desafios e armadilhas.
  • Resenha do livro Aceleração e alienação: Esboço de uma teoria crítica da temporalidade na Modernidade tardia, Harmut Rosa

    Resenha do livro Aceleração e alienação: Esboço de uma teoria crítica da temporalidade na Modernidade tardia, Harmut Rosa

    por 
    Rafael H. Silveira
    resumo 
    Em Aceleração e alienação: Esboço de uma teoria crítica da temporalidade na Modernidade tardia, Hartmut Rosa recapitula resumidamente e amplia sua Teoria da Aceleração Social. A ampliação da teoria se dá em primeiro lugar através da análise de elementos desaceleradores da tendência aceleratória e, em seguida, da análise das consequências da aceleração para a Teoria Crítica social atual, cujos questionamentos levantados e respostas dadas até o presente momento não apresentariam uma solução para a perda da credibilidade do projeto da Modernidade, uma vez que a aceleração social teria sucumbido e instrumentalizado a possibilidade de autonomia prometida. Partindo da busca de uma resposta à questão de o que seria uma vida plena, Rosa retraça, assim, o contexto do surgimento de diferentes categorias de alienação, retratando em sua teoria uma tendência social crescente extremamente relevante e em crescimento na era moderna.
artigo anterior 

Investigación feminista, historia de las mujeres y mujeres en la historia en los estudios sobre Próximo Oriente Antiguo

por 
Agnès García Ventura
resumo 
Suele decirse que el estudio del pasado siempre tiene relación con el presente y con el futuro, bien porque presente y futuro se construyen a su imagen y semejanza, bien porque no podemos imaginar un pasado sin los referentes de nuestro presente. Por este motivo, ocuparse de la historia de las mujeres en la Antigüedad y de cómo incluir a las mujeres en la historia, nos permite reflexionar acerca de la situación de las mujeres en el mundo presente en el que vivimos y en el mundo futuro en el que querríamos vivir. En este artículo propongo aproximarnos a este tema con las herramientas críticas de la investigación feminista, ilustrando la propuesta con algunos ejemplos acerca de cómo algunos sesgos pueden afectar al modo en que se aborda el estudio de las vidas de las mujeres en el Próximo Oriente Antiguo.
próximo artigo 

Resenha do livro Memória Coletiva e Identidade Nacional, Miryam Santos

por 
Mariana Moreira
resumo 
A presente resenha aborda o livro “Memória Coletiva e Identidade Nacional”, de autoria de Myrian Sepúlveda dos Santos. Importante pesquisadora de temas como memória, identidade, práticas políticas, culturais e relações raciais, obteve seu título de doutora em Sociologia pela New School for Reserch de Nova Iorque e desenvolveu pesquisas em pós-doutorado no Centro de Estudos Latino-Americanos da University of Cambridge; no Centro de Pesquisa sobre Relações Sociais da Université de Paris V e no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Atualmente é professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e coordena o Grupo de Pesquisa Cultura e Poder, registrado no CNPQ Arte, e o museu Afrodigital. Suas análises abordam teorias de nomes de grande relevância para os Estudos Culturais como Karl Marx, Walter Benjamin, Michel Foucault, Maurice Halbwach, Stuart Hall entre outros.
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artigos

A higienização do século XIX e o "contra corrupção" do século XXI: Similaridades no discurso das elites no Brasil

por 
André Vitor
resumo 

Cada momento histórico é único, mas carrega em si tensões permanentes, num paradoxo entre o novo e o velho, valendo-se de novas experiências sem, entretanto, negar toda a bagagem cultural adquirida. Assim, este trabalho busca relacionar dois momentos distintos da história do Brasil, mas com características em comum: a higienização do início da República e o momento recente, em que estava em jogo o mandato da presidente Dilma Rousseff. Por ser o Brasil um país com pouca mobilidade social e sem alterações substanciais no seu controle político, veremos como os interesses das camadas superiores da sociedade se reproduzem e se perpetuam, no intuito de fazer a população aderir a essa ideologia em favor de seus interesses privados.

 
The hygienization of the 19th century and the anti-corruption slogans of the 21st century: similarities in the discourse of the elites in Brazil
abstract 

Each historical moment is unique; however, it carries in itself its permanent tensions, in a paradox between the new and the old, resorting to new experiences without, therefore, denying all the acquired cultural baggage. Thus, this work aims to relate two distinct moments in the Brazilian History, which share common characteristics: the hygienization in early Republican Brazil and nowadays, in which President Dilma Roussef’s mandate was at stake. Since Brazil is a country with little social mobility and no substantial alterations in its political control, we will see how the interests of the upper class are developed/formed and perpetuated, making the population adhere to that ideology in favor of the elite’s private interests.

palavras-chave 
 

INTRODUÇÃO

A imprensa internacional volta seus olhos ao Brasil a respeito, notadamente, do momento politico atual. No dia 17 de abril de 2016, a câmara dos deputados aprovou a abertura do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, ora efetivado, sob a alegação de crime de responsabilidade fiscal.

Como reação, o governo denunciou esse processo em andamento por considerá-lo golpe político. A questão se apresentou de forma polarizada, como tem sido desde a eleição de 2014. A imprensa brasileira tratou o impeachment como uma tentativa democrática de combater a corrupção enquanto uma significativa parcela da imprensa internacional, mesmo a mais conservadora como a revista inglesa The Economist, tratou o episódio como de interesse político. Cabe nesse caso acrescentar que seis famílias controlam, aproximadamente, 70% dos veículos de informação no país[1] [1] Na indústria televisiva, três famílias têm maior peso: a família Marinho (dona da Rede Globo, que tem 38,7% do mercado), o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus Edir Macedo (maior acionista da Rede Record, que detém 16,2% do mercado) e Silvio Santos (dono do SBT, 13,4% do mercado). A família Marinho também é proprietária de emissoras de rádio, jornais e revistas – campo em que concorre com Roberto Civita, que controla o Grupo Abril (ambos detêm cerca de 60% do mercado editorial). Famílias também controlam os principais jornais brasileiros – como os Frias, donos da Folha de São Paulo, e os Mesquita, de O Estado de S. Paulo (ambos entre os cinco maiores jornais do país). No Rio Grande do Sul, a família Sirotsky é dona do grupo RBS, que controla o jornal Zero Hora, além de TVs, rádios e outros diários regionais.Famílias ligadas a políticos tradicionais estão no comando de grupos de mídia em diferentes regiões, como os Magalhães, na Bahia, os Sarney, no Maranhão, e os Collor de Mello, em Alagoas. (Fonte BBC Brasil), situação que foi amplamente divulgada recentemente, no mesmo momento em que se desvelou um escândalo de grampos telefônicos promovidos por Rupert Murdoch, reafirmando a influência considerável exercida por alguns monopólios nos âmbitos político e econômico.

A polêmica é vista e vivida por todos mas, afinal: foi golpe ou tentativa de mudança?

Só futuramente teremos consciência em função dos desdobramentos de tudo que ocorre na realidade presente. Este trabalho, num esforço de contribuir para a discussão, propõe uma reflexão acerca de dois momentos históricos vividos pela sociedade brasileira. O atual e a higienização do Rio de Janeiro em fins do século XIX e inicio do século XX.

Para isso, utilizaremos notícias e crônicas publicadas nos jornais daquela época, principalmente em A Notícia, Gazeta de Notícias e no Jornal do Commercio. Sobre a atualidade, buscaremos notícias e opiniões emitidas nos principais veículos de informação, como Estado de São Paulo e Folha de S. Paulo, assim como os debates produzidos por intelectuais, seja no século XIX ou hoje, no XXI. Assim, poderemos traçar um paralelo a respeito dos dois períodos e refletir sobre as semelhanças e especificidades de cada um.

I

Os fatos históricos são filtrados pela atuação da imprensa. Os meios de comunicação no Brasil, mais que em outros países (também em função do controle restrito a poucas famílias, conforme mencionado anteriormente, o que impede a veiculação da informação de forma democrática e plural), têm papel fundamental na formação de opinião e nos rumos tomados pela sociedade. Com o advento do jornalismo no Brasil, em meados do século XIX, a literatura ganhou espaço privilegiado, principalmente, pelo fato do jornal ser a principal fonte de informação na época, tornando-se protagonista na formação ideológica de um público leitor ascendente; assim como as crônicas no Brasil tiveram papel fundamental para estabelecer um registro histórico, “lugares de memória” como afirma Margarida de Souza Neves:

Crônica e História podem ser consideradas portanto, como particulares ‘lugares de memória’, já que se constituem em suportes físicos da memória onde constantemente se reconstrói. Cronistas e historiadores são ‘homens-memória’ e desempenham seu ofício como autores e interpretes da memória coletiva. (NEVES, 1995, p. 27)

Assim, as crônicas, além das notícias, escritas para os jornais no século XIX se apresentam como terreno fértil não só no campo da literatura como no da História propriamente dita. O fato desse gênero, considerado menor, ter caminhado ao rés-do-chão também o torna um legítimo porta voz da sociedade, como um discurso próximo do real; ou, nas palavras de Davi Arrigucci:

A crônica se situa bem perto do chão, no cotidiano da cidade moderna, e escolhe a linguagem simples e comunicativa, o tom menor do bate-papo entre amigos, para tratar das pequenas coisas que formam a vida diária, onde às vezes, encontra a mais alta poesia. Essa é a situação preferida das crônicas de Rubem Braga. (ARRIGUCCI, 1987 p. 55)

Complementando com Antonio Candido e buscando uma definição próxima daquilo que é proposto neste trabalho:

A leitura de Bilac é instrutiva para mostrar como a crônica já estava brasileira, gratuita e meio lírico-humorística, a ponto de obrigá-lo a amainar a linguagem, a descascá-la dos adjetivos mais retumbantes e das construções mais raras. Nela não parece caber a sintaxe rebuscada com inversões frequentes; nem o vocabulário “opulento” como se dizia para significar que era variado, modulando sinônimos e palavras tão raras quanto bem soantes. A crônica operou milagres de simplificação e naturalidade... (CANDIDO, 1992, p. 16)

Isso demonstra a busca pela popularização dos textos literários escritos nos jornais. Mais adiante, poderemos perceber a importância desse discurso para o leitor, ainda em formação.

Assim, a analogia a ser buscada consiste em refletir sobre se o discurso proposto pela mídia no momento atual, com adesão das camadas populares, na defesa de uma higienização da política, é uma estratégia para alcançar seus interesses próprios. Sabemos que esse discurso proposto pelos liberais no século XIX em favor da modernização do Rio de Janeiro e transformação do seu cenário numa metrópole europeizada, com valores progressistas vindos de além-mar era uma forma de reorganizar o espaço público de acordo com suas aspirações, como afirma Sevcenko:

Sem mais delongas, o novo grupo social hegemônico poderá exibir os primeiros monumentos votados à sagração de seu triunfo e de seus ideais. O primeiro deles se revela em 1904, com a inauguração da Avenida Central e a promulgação da lei da vacina obrigatória. Tais atos são o marco inicial da transfiguração urbana do Rio de Janeiro. Era a “regeneração” da cidade e, por extensão, do país, na linguagem dos cronistas da época. Nela são demolidos os imensos casarões coloniais e imperiais do centro da cidade, transformados que estavam em pardieiros em que se abarrotava grande parte da população pobre, afim de que as ruelas acanhadas se transformassem em amplas avenidas, praças e jardins, decorados com palácios de mármore e cristal e pontilhados de estátuas importadas da Europa. A nova classe conservadora ergue um decór urbano à altura da sua empáfia. O segundo grande marco da sua vitória é a Exposição Nacional do Rio de Janeiro, que trouxe a glorificação definitiva dos novos ideais da indústria, do progresso e da riqueza ilimitados. (SEVCENKO, 2003, p. 43)

Desta forma, estava em curso a transformação não só do espaço público mas do modo de vida e da mentalidade carioca segundo esses padrões impostos por um uma elite. Junta-se ao processo, a condenação e negação de todo e qualquer elemento da cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada pretendida pela sociedade dominante.

É possível reparar na similaridade do discurso (grifo meu) pretendido por uma elite para atingir seus objetivos, em qualquer época. Sevcenko afirma que a palavra organizada em discurso incorpora em si, desse modo, toda sorte de hierarquias e enquadramentos de valor, intrínsecos às estruturas sociais de que emanam (2003, p.28). Portanto, um discurso pertencente a uma mesma elite, mesmo que em épocas distintas, apresenta um mesmo viés ideológico. Eugenio Bucci cita que uma mentira narrada pelos locutores da Globo não é a mesma coisa que uma mentira publicada num quinzenário de uma pequena cidade. (BUCCI, 2000, p.31) E, em outro momento, demonstra que os eventos mais fundamentais da democracia, de uma escolha de prefeitos ao processo de impeachment de um presidente, adquirem visibilidade à medida que se convertam em shows de mídia. (2000, p.193) Se não há ética possível onde viceja o conflito de interesses, é pertinente lembrar que, atualmente, em 2016, os irmãos Marinho ocupam, segundo a Revista Forbes, as 7°, 8° e 9° posições no ranking de homens mais ricos do Brasil, o que nos leva a refletir sobre a influência dos interesses privados das Organizações Globo nas decisões políticas nacionais, o que já foi fartamente comprovado por inúmeros estudiosos sobre o assunto.

Novamente, a proposta que aqui se impõe é a substituição do termo Higienização, cunhado para essa reorganização do espaço físico e social, por uma higienização contemporânea sob o lema astuto do Contra a corrupção. Embora a analogia não seja tão óbvia, o fato de termos essa aspiração representada no congresso por uma comissão escolhida para o impeachment em que 34 dos 65 membros respondem a inquéritos ou ações penais demonstra o quão esse discurso pode e vem sendo usado de forma sistemática e oportunista por quem pretende obter dividendos políticos no momento.

Corroborando esse pensamento, o editorial do Estado de São Paulo, em 07 de abril de 2016, também apresenta Dilma como esse “elemento” a ser retirado do caminho para “que se dê início à reconstrução nacional.” Ou seja, a figura da presidente, a qual não possui quaisquer denúncias ou processos contra si, se tornou obstáculo ao desenvolvimento. Essa higienização passou a ser tratada de maneira pro forma pelo tradicional jornal que ainda afirma que “sem essa penosa tramitação, dificilmente o País sairá da crise que o consome.” É notório observar a transformação de um processo jurídico previsto na Constituição federal de 1988 em um processo político que, ainda segundo o editorial, tornou o “Governo inviabilizado por uma presidente da República inábil e inepta, se deslegitimou de facto por decisão da maioria absoluta dos brasileiros”. Ou seja, segundo o próprio Estadão, trata-se de processo político...

II

Em 26 de janeiro de 1893, o Cabeça de Porco, o mais célebre cortiço carioca da época, foi demolido sob “o deleite dos jornais do dia.” (CHALHOUB, 1996, p. 16) O prefeito Barata Ribeiro e o chefe de polícia da Capital Federal estavam presentes, assim como outras autoridades estabelecendo um espetáculo midiático (numa época muito precedente à chamada sociedade do espetáculo) ou, nas palavras de Sidney Chalhoub, no livro Cidade Febril:

As repercussões da destruição do famoso cortiço na grande imprensa do período formam um espetáculo à parte. Na Revista Ilustrada, o evento foi saudado com um humor asqueroso: o leitor foi servido de um prato com uma enorme cabeça de porco, de olhos entreabertos e fisionomia lacrimejante, e sobre a qual se achava uma barata devidamente cascuda e repugnante. (...) Em geral, as notícias sobre o episódio louvavam a decisão e a coragem do prefeito com alusões à mitologia greco-romana. Em estilo gongórico bastante comum na imprensa do período, a Gazeta transfigurava o prefeito em Perseu, e o Cabeça de Porco em Cabeça de Medusa (...) (CHALHOUB, 1996, p. 18) (Anexo 1)

A respeito disso é possível recuperar a capa da Revista Veja (anexo 2), de 12 de março de 2016, em que Lula aparece transfigurado também numa composição com uma Cabeça de Medusa. Mas não foi só isso. Ainda mostra várias jararacas numa alusão típica ao naturalismo de Aluísio Azevedo. Em outro caso, também recente. é possível ver a cabeça de Dilma, na capa do jornal O Estado de São Paulo (anexo 3), em 4 de maio de 2016, com a tocha olímpica acesa à sua frente, também formando uma sobreposição de imagens, o que poderia nos remeter ao fogo da Inquisição. Talvez, não apenas constituindo uma sinistra coincidência mas, reafirmando o discurso histórico de uma elite altamente conservadora e estratificada, sobrevivente aos eventos históricos do país sem que se veja comprometida sua hegemonia. E, talvez, esse sentimento de ódio com relação à Dilma e Lula seja o símbolo do desconforto dessas classes com os programas sociais promovidos pelos últimos governos.

Ainda, na obra de Chalhoub, há uma consideração a respeito da diversidade urbana:

Vamos localizar aqui dois pontos fundamentais dessa forma de lidar com a diversidade urbana. O primeiro é a construção da noção de que ‘classes pobres’ e ‘classes perigosas’ – para usar a terminologia do século XIX – são duas expressões que denotam, que descrevem basicamente a mesma ‘realidade’. O segundo refere-se ao surgimento da ideia de que uma cidade pode ser apenas ‘administrada’, isto é, gerida de acordo com critérios unicamente técnicos ou científicos: trata-se da crença de que haveria uma racionalidade extrínseca às desigualdades sociais urbanas, e que deveria nortear então a condução não-política, ‘competente’, ‘eficiente’, das políticas públicas. Essas duas crenças, combinadas têm contribuído muito, em nossa história, para a inibição do exercício de cidadania, quando não para o genocídio mesmo de cidadãos. (CHALHOUB, 1996, p.20)

Apreendamos como, numa crônica de Olavo Bilac publicada na Gazeta de Notícias, em 21 de junho de 1903, esse debate se evidenciava:

Administrar não é somente gerir: é também, e principalmente, assistir, acudir, prover. Quem administra não pode, está claro, dar ventura e riqueza a todos. Mas pode, e deve, dar trabalho aos homens de boa vontade. Dar trabalho não é ministrar socorro: é ministrar justiça. O homem pobre, que vê a sua atividade sem emprego, não tem a esperança infatigável. Bate a uma, a dez, a cem portas: quando o desespero lhe entra na alma, aí está a taverna, com o seu balcão tentador, aí está o álcool com as suas alucinações, aí está a gazua para os roubos e a faca de ponta para o assassinato. (BILAC, 1903, p.2)

Nota-se, na prática, esse discurso na realidade contemporânea quando observamos os dividendos sociais conquistados nos últimos anos. Como se o Estado devesse ser gerido como uma empresa. As ditas pedaladas fiscais, de se acusou a presidenta, registre-se, são a respeito de pagamentos de benefícios sociais o que, numa gestão típica liberal, seria inconcebível. O ranço da classe média e da elite também passa por não aceitar um estado de bem estar social como visto, inclusive, na Inglaterra, um país com uma visão sabidamente liberal. A respeito dessa ideologia liberal distorcida, José Murilo de Carvalho apresenta um diagnóstico precioso a respeito do que foi, e ainda é, essa mentalidade controversa a respeito do capitalismo brasileiro:

Poderíamos dizer que se deu uma vitória do espírito do capitalismo desacompanhado da ética protestante. Desabrochou o espírito aquisitivo solto de qualquer peia de valores éticos, ou mesmo de cálculo racional que garantisse a sustentação do lucro a médio prazo. Era um capitalismo predatório, fruto típico do espírito bandeirante na concepção que lhe deu Viana Moog. (CARVALHO, 1987, p. 26-7)

E complementa em seguida:

O que antes era feito com discrição, ou mesmo às escondidas, para fugir à vigilância dos olhos imperiais, agora podia ser gritado das janelas ou dos coches, era quase motivo de orgulho pessoal e de prestígio público. Os heróis do dia eram os grandes especuladores da bolsa. (CARVALHO, 1987, p. 27)

O último trecho apresentado anteriormente também pode servir para ilações sobre o entendimento a respeito da moral nacional se compararmos o orgulho citado com o apoio dado por manifestantes (anexo 4), nas passeatas que reuniram mais de 2 milhões de pessoas, a Eduardo Cunha, presidente da câmara e réu em processos, inclusive com documentos que comprovam sonegação fiscal e evasão de divisas.

Da mesma maneira que hoje se discute “a frágil democracia brasileira” (palavras da economista Marilza de Melo Foucher em seu artigo no Correio do Brasil, em 7 de abril de 2015), em 1915 o editorial da Revista Careta, denominado “A Ficção da Soberania popular”, afirmava que “o exercício da soberania popular é uma fantasia, e ninguém a toma a sério.” (CARVALHO, 1987, p. 89)

Então, é possível, que o discurso veiculado pelos órgãos de imprensa, e que possui fundamental importância no tripé formador da sociedade, camufle sua verdadeira intenção. Mais um exemplo: a transformação do Passeio Público no Rio de Janeiro pretendeu afastar as ameaças, o outro, derrubando a vegetação típica brasileira mas, como posto, se apresentou como algo positivo a todos, como podemos observar no exemplo abaixo, uma crônica de Olavo Bilac publicada no jornal A Notícia, em 4 de agosto de 1906:

Mas não deixemos sem louvor a transformação do velho Passeio Público, que deixou de ser um carrancudo e cerrado parque colonial, para ser um admirável jardim moderno, cujas árvores majestosas pompeiam agora, em plena e soberba formosura, livres do mato espesso que as encobria e matava. Agora, quando os bondes de Botafogo rodeiam o Passeio, não há quem se não extasie diante do lindo espetáculo dos extensos e verdes canteiros, de onde sobem livremente para o céu as palmeiras esbeltas, e as imensas Cesalpiniáceas e Mirtáceas, através de cujos troncos a vista alcança longe a face azul e rebrilhante do mar... (BILAC, 1906, p. 5)

Ficou evidente que, a partir das modificações, o parque se tornou “limpo” e livre dos elementos indesejados. A respeito, então, de classes perigosas vs classes pobres mencionados acima, faz-se mister citar que a expressão “classes perigosas” parece ter surgido na primeira metade do século XIX. A escritora Mary Carpenter propôs um estudo na década de 1840 sobre criminalidade e “infância culpada” – o termo do século XIX para os nossos “meninos de rua” – e cita o termo claramente, ainda conforme Chalhoub, no sentido de delinear um grupo social formado à margem da sociedade civil. Esse termo pode ser encontrado como de grande importância no debate parlamentar ocorrido na Câmara dos Deputados do Império do Brasil, logo em seguida à escravidão, em decorrência da preocupação com o ócio que deveria ser reprimido no intuito de “evitar maiores consequências para a sociedade” (CHALHOUB, 1996, p. 19). Os parlamentares recorreram, naquele momento, para justificar suas ideias, a M. A. Fréiger, um alto funcionário da polícia de Paris que, baseando-se na análise de inquéritos e estatísticas policiais, escreveu um livro que versa sobre “as classes perigosas da população nas grandes cidades”. O objetivo era enquadrar os malfeitores de Paris. Em suma, Fréiger falhou na tentativa de determinar com qualquer precisão a fronteira entre as “classes perigosas” e as “classes pobres.” Pois é justamente no erro que os parlamentares brasileiros encontraram a “salvação nacional” para o problema da criminalidade como vemos a seguir:

As classes pobres e viciosas, diz um criminalista notável, sempre foram e hão de ser sempre a mais abundante causa de todas as sortes de malfeitores: são elas que se designam mais propriamente sob o título de – classes perigosas – pois quando mesmo o vício não é acompanhado pelo crime, só o fato de aliar-se à pobreza no mesmo indivíduo constitui um justo motivo de terror para a sociedade. O perigo social cresce e torna-se de mais a mais ameaçador, à medida que o pobre deteriora a sua condição pelo vício e, o que é pior, pela ociosidade. (CHALHOUB, 1996, 20-1)

Essa discussão merece relevo na atualidade visto que verificamos um discurso de ódio repetido pelo senso comum a respeito desses benefícios sociais e a inclusão de camadas mais pobres na sociedade civil. Perceba-se o termo “bolsa esmola” cunhado e insistentemente repetido por muitos que, sem perceber, estão reafirmando a visão que se tem destas classes. Talvez, também aí, haja implícito no discurso um desconforto das classes mais altas com essa inclusão e ocupação do mesmo espaço por todos.

Para corroborar esse pensamento, o antropólogo Roberto Da Matta, em sua obra A Casa e a Rua, ilustra quem seria esse outro, o desconhecido, aquele que não pertence à mesma estirpe, clã ou família. Da mesma forma que o discurso adjacente do “bandido bom é bandido morto” também repete e confunde a respeito dessa relação entre classe pobre e classe perigosa.

III

Para que não paire dúvidas a respeito das insistentes tentativas históricas de manter a população à margem dos acontecimentos políticos, Carvalho lembra que as mudanças instituídas na República provocaram um “retrocesso no que se refere a direitos sociais.” “Era uma ordem liberal, mas profundamente antidemocrática e resistente a esforços de democratização. (CARVALHO, 1987, p. 45)”. Nota-se aí, um fenômeno semelhante à realidade de 2016, inclusive com a aprovação da terceirização que propõe a perda de direitos trabalhistas. A alegoria nos é apresentada de forma profícua por Benjamim Steinbruch, presidente da FIESP, numa entrevista concedida ao Portal UOL, ao jornalista Fernando Rodrigues. Inclusive, percebe-se a confusão que se faz a respeito da modernidade e direitos do trabalhador, da mesma maneira como já assinalado anteriormente:

F.R.: O sr. mencionou emprego. O sr. sempre fala na flexibilização de leis trabalhistas, fala que é necessário acompanhar a experiência de outros países do mundo sobre esse tema. Objetivamente, quais alterações pontuais o sr. acha que são necessárias e urgentes na área da regulação do emprego?

B. S.: Eu acho que, como você bem sabe, nós estamos em uma lei que é da época de Getúlio Vargas [1882-1954]. Que foi de vanguarda naquele momento e que nos serviu até hoje. Agora, o Brasil mudou. As condições de emprego mudaram. Então a gente tem que se adaptar a uma nova realidade, se possível ainda de vanguarda.

F.R.:Mas, o que por exemplo?

B.S.:Muito mais flexível.

F.R.: Fala um item da CLT [Consolidação das Leis de Trabalho] que deveria ser eliminado, ou alterado, e de que forma alterado?

B.S.:O custo do emprego não pode ser o dobro, porque você paga para o empregado X, você tem dois X de custo indireto.

F.R.: Mas vamos lá, Fundo de Garantia...

B.S.: Tem que ser flexível.

F.R.:Vamos lá, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço [FGTS], isso deve ser mantido ou deve ser eliminado?

B.S.: Não, eu acho que os direitos devem ser mantidos. O que você tem que fazer é flexibilizar a lei trabalhista, ou seja....

F.R: Mas, como?

B.S.: A jornada pode ser flexível, a idade pode ser flexível.

F.R.: Idade, como?

B.S.: A idade do empregado poder trabalhar.

F.R.: Trabalhar mais jovem?

B.S.: Trabalhar mais jovem, em condições ideais. A gente pode ter por parte do empregador e do empregado uma convergência de interesse. A gente hoje está engessado, está penalizando tanto o empregador quanto o empregado.

F.R.: O sr. me desculpe, mas só flexibilizar a idade mínima para trabalhar e flexibilizar a jornada não diminui muito os custos.

B.S.: Você pega o que tem de mais moderno no mundo e copia e depois melhora aqui no Brasil. O Brasil em leis trabalhistas é um dos mais atrasados, nesse momento, no mundo.

F.R.: Como o sr. fala de custos que dobra para o empregador...

B.S.: Você sabe quanto custa para mandar um empregado embora?

F.R.: Sei.

B.S.: Você sabe que tem muita gente hoje que não pode mandar empregado embora porque não tem dinheiro para mandar...

F.R.: Para mandar o empregado embora. Agora, mas aí então...

B.S.: Então, se você for ver a....

F.R.: Mas, o problema do custo do empregado para o empregador está relacionado diretamente aos direitos que os empregados têm. Como é possível reduzir o valor que se paga para ter empregado sem reduzir os direitos que lhe tem hoje?

B.S.: Por exemplo, se você vai hoje em uma empresa nos Estados Unidos, aqui a gente tem uma hora de almoço, normalmente não precisa de uma hora do almoço, porque o cara não almoça em uma hora. Você vai nos Estados Unidos você vê o cara almoçando com a mão esquerda e operando... comendo o sanduíche com a mão esquerda e operando a máquina com a direita, e tem 15 minutos para o almoço, entendeu? E eu acho que se o empregado se sente confortável em poder, eventualmente, diminuir esse tempo, porque a lei obriga que tenha que ter esse tempo? (grifo meu)

O discurso, portanto, mesmo considerando que estamos aproximadamente cento e vinte e cinco anos depois na linha do tempo, pertence a uma linha ideológica das classes dominantes, como já foi insistentemente apresentado. Raymundo Faoro cita em seu estudo, com caráter enciclopédico, o pensamento a respeito dessa distopia liberal brasileira:

O empresário quer a indústria, mas solicita a proteção alfandegária e o crédito público. Duas etapas constituem o ideal do empresário: na cúpula, o amparo estatal; no nível da empresa, a livre iniciativa. (FAORO, 1958, p. 517)

IV

Voltando então à questão da higienização, a demolição do cortiço Cabeça de Porco possibilitou que se consolidasse o sistema oligárquico de dominação, à cidade pôde ser dado o papel de cartão postal da República. “Entrou-se de cheio no espírito da Belle Époque. (...) Mais que nunca, o mundo literário voltou-se para Paris, os poetas sonhavam viver em Paris e, sobretudo, morrer em Paris.” (CARVALHO, 1987, p. 39)

Cumpre também lembrar a participação de Coelho Netto, como cronista em A Noite, jornal criado por Irineu Marinho, uma espécie de Jornal Nacional entre os jornais impressos, visto que foi implementado para ser vendido no período noturno e, assim, apresentar os fatos do dia. Netto também se mostrou favorável à derrubada de cortiços como o tradicional Cabeça de Porco. Em uma crônica definiu essa moradia como “pequenos departamentos sórdidos, de onde o vício emigra, onde prolifera a infâmia, onde o crime nasce, onde a inocência morre.” (PEREIRA, 2005, p. 218) Coelho Netto defendia a substituição “pura e simples das tradições populares que combatia por outras de origem europeia, que considerava mais dignas de nação civilizada. (2005, p. 218)

O professor da UNESP, Álvaro Simões, estudioso das crônicas de Olavo Bilac, relata que o argumento da necessidade de limpeza, insistentemente exaltado por Bilac, camuflou seu interesse em transformar o espaço carioca e “abrir largas avenidas como a Central, a Rodrigues Alves e a Beira-Mar. A golpes de picaretas, o Rio, enfim, civilizava-se.” (SIMÕES, 2011, p. 25) Ou, em palavras do próprio Bilac na coluna Registro, em 5 de fevereiro de 1903:

Cada dia que corre traz um novo indício de regeneração. Ajardinam-se as praças, arborizam-se as ruas, deitam-se abaixo os pardieiros. E já é lícito, sem correr o risco de passar por visionário, prever que dentro de um curto decênio, a cidade, saneada pela abertura de uma grande avenida e pelos trabalhos do porto, estará livre das epidemias que só medram onde não há limpeza. (BILAC, 1903, p. 2)

Tempos depois, em 4 de fevereiro de 1904, Bilac exultou o fato do verão não vir acompanhado da febre amarela, epidemia transmitida, por coincidência mórbida, pelo mosquito Aedes Aegypti, afirmando ser “razoável admitir a eficácia das medidas postas em prática pelo governo para acautelar a saúde pública.”. Desta forma, não considerou ainda, segundo Simões, que a vitória se tratava apenas às medidas de combate ao mosquito.

A ideologia da higienização, segundo Chalhoub, surgiu a partir de dois eixos principais: os cortiços, por apresentarem um problema para o controle social dos pobres e a questão da saúde propriamente dita. Cumpre acrescentar que os vereadores, de fato, só se preocuparam com as condições higiênicas das instalações. Dessa forma, o que resultou foi a proibição da construção de novos cortiços, um projeto do vereador José Pereira Rego. Intensos debates acerca da questão da existência dos cortiços proliferaram na época. Os cortiços foram assemelhados em conceito ao de “classes perigosas” o que não permite, a esta altura, que se dissocie a questão social impregnada nos discursos relacionados ao processo de “limpeza”.

Era inegável o crescente poder de sedução da ideologia da higiene sobre alguns setores da sociedade, daí a possível analogia com o discurso atual “contra a corrupção” no que seria uma espécie de “higienização da política” (termo meu) e que encontrou hospedeiro em vários setores populares, insatisfeitos, embora distantes da vida política nacional, com a corrupção generalizada que sempre caracterizou praticamente todos os compartimentos da vida social brasileira.

A questão dos cortiços ainda despertou grande interesse do empresariado que vislumbrou grandes oportunidades de investimentos com a expansão da cidade e do mercado imobiliário. Chalhoub cita o empresário Artur Sauer, dono da companhia de Saneamento do Rio de Janeiro, que justificava o discurso da higiene dizendo, inclusive, que o inconveniente dos cortiços estaria na “ameaça constante aos moradores próximos”. Com isso, a utilidade do projeto não resultaria em melhorias nas condições de vida das classes populares mas “na vantagem de torná-las menos perigosas para a classe dominante.” (CHALHOUB, 1996, p. 53)

A assimilação dos discursos promovidos pelas castas históricas presentes tanto no controle da imprensa como na intelectualidade brasileira induzem à impressão de que esse caminho seria “árduo mas necessário”. No início do século XX, o nome dado ao que as camadas populares, e os opositores da transformação, chamaram de “bota-abaixo”, pelas elites, por outro lado, foi denominado “regeneração”. Desta forma, mostrava que algo estava doente e precisava ser regenerado. Machado de Assis também participou dessa discussão e se ressentiu ao perceber, já no fim da vida, que as mudanças propostas nesse bota-abaixo eram dramáticas e acabaram estabelecendo novas divisões de classe. (GLEDSON, 2008, p. 14)

V

Os críticos ao impeachment acenavam que existia uma luta de classes em que essa camada mais conservadora, também advinda das classes médias mais opulentas, estaria buscando uma reação à ascensão desses pobres que passaram a frequentar os mesmos espaços em função dessa melhora. Ora, não haveria uma relação no sentido de expurgar esses pobres dos mesmos espaços através de um governo que representasse essas camadas incomodadas?

Para que não paire dúvidas de que a higienização apresentou, camufladamente, um caráter discriminatório e segregador, embora nem todos estivessem alinhados a esse discurso, pode-se citar uma passagem de Rui Barbosa:

É um mal, de que só a raça negra logra imunidade, raro desmentida apenas no curso das mais violentas epidemias, e em cujo obituário, nos centros onde avultava a imigração europeia, a contribuição das colônias estrangeiras subia a 92 por cento sobre o total de mortos. Conservadora do elemento africano, exterminadora do elemento europeu, a praga amarela, negreira e xenófoba, atacava a existência da nação na sua medula, na selva regeneratriz do bom sangue africano, com que a corrente imigratória nos vem depurar as veias da mestiçagem primitiva, e nos dava, aos olhos do mundo civilizado, os ares de um matadouro da raça branca. (CHALHOUB, 1996, p. 58)

Como, então, não considerar a violência à cidadania inserida nesse discurso reprodutor do que foi, na realidade, essa transformação verificada no Rio de Janeiro?

Jessé de Souza, professor da UFF, afirmou, numa entrevista à imprensa, que o processo de impeachment não é legítimo mas comprova que “a ascensão econômica de classes sociais mais pobres nos últimos anos causou um certo desconforto em determinados setores da classe média”. Isso, segundo ele, não se deveu somente à já conhecida luta de classes mas também “por um medo irracional de que essas classes pudessem competir pelos privilégios e empregos com a própria classe média.”

Diante disso é importante ressaltar que Chalhoub dedica um capítulo inteiro de seu livro na discussão de ideologia racial, febre amarela e política nos 1870, mostrando que todo discurso higienizador carrega implicitamente a questão de classes e raças. Não é possível, portanto, nesta discussão, desprezar esta variável na tentativa de compreender, tanto o fenômeno da higienização como, atualmente, o impeachment. Gilberto Freyre, inclusive, comenta a respeito da mortalidade causada pelo fracasso no tratamento da febre amarela para a população negra que isso pareceria “a epidemia a alguns deles, pretos e pardos, a arte diabólica de brancos para acabar com a gente de cor.” (CHALHOUB, 1996, p. 137)

Mais uma vez observamos que as elites não aceitaram, e ainda não aceitam, dividir o mesmo espaço, seja físico ou social, com os mais pobres. O sentimento de ameaça, então, gerou uma espécie de acordo entre esses setores da elite e classe média no sentido de “transformar a raiva dos mais pobres em uma forma de coragem cívica, como se houvesse uma defesa do bem comum. E afirma ainda que isso se deu por uma manipulação econômica, política e midiática. Isso, indubitavelmente, criou uma base social para esse golpe. É, obviamente, um “golpe branco” porque não tem a intervenção das forças militares. (SOUZA, 2015).

E, buscando um cenário propício à reflexão e elaboração de analogias, cumpre lembrar que a reforma urbana custou caro ao Rio de Janeiro (anexo 5), fundamentalmente às classes populares que se viram expulsas do centro e se encontraram com a necessidade de arcar com custos mais elevados de transporte e aluguéis mais caros em função da valorização. E mais: a expulsão, por essas camadas superiores, de atividades de comércio e manifestações populares como a boêmia e a capoeira, proporcionava, enfim, que se mantivesse uma aparência digna da Belle Époque tão almejada!

As ideias fora do lugar, texto de Roberto Schwarz, denotam aspectos acerca de uma mesma questão, já retratada: a mimese ao pensamento europeu. Em primeiro lugar “a óbvia superioridade da Europa” e, deste modo, a adoção de um modelo que visasse reproduzir em todos os cantos essas ideias sem, entretanto, levar em consideração a realidade nacional. Uma discussão que até hoje permeia o pensamento brasileiro na busca de um modelo ideal de desenvolvimento. O discurso impregnado secularmente também aponta na direção de perceber como esse “latifúndio pouco modificado viu passarem as maneiras barroca, neoclássica, romântica, naturalista, modernista e outras, que na Europa acompanharam e refletiram transformações imensas na ordem social.” (SCHWARZ, 2000, p. 10)

Assim, por esse prisma, o que observamos atualmente é uma reedição de um discurso que visa manter o status quo. Na higienização, no golpe de 64, na Revolta da Vacina, na Proclamação da República, enfim, nos mais diversos eventos históricos nacionais, o discurso que perpassa todos esses processos vão na direção de legitimar as reais intenções desta casta que busca, através de meios legais, alcançar seus objetivos de manutenção da sua posição na pirâmide social e econômica intacta e sem possíveis ameaças a essa imobilidade secularmente constituída. Utiliza-se, para isso, o aparato jurídico, midiático, militar, ou todos, para, enfim, alcançar a maior adesão possível a viabilizar essa empreitada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Brasil é um país em formação, já retratou Darcy Ribeiro, e, sendo assim, ainda oscila em busca de um modelo de desenvolvimento. Embora pareça clichê é preciso sempre ressaltar a existência, entre nós, de uma elite arcaica e conservadora que, talvez pela pouca mobilidade social verificada, permaneça “inerte” em seu pensamento. Com isso, o discurso que permitiria ao Brasil sair do tradicional atraso não se atualiza. Não se trata de impor uma modernidade pronta, dual, mas de um modelo que considere as características, mesmo as vicissitudes, já tão exaustivamente apontadas por intelectuais que se debruçaram sobre o assunto.

O ideal europeu ainda resiste após gerações, sendo recentemente acompanhado de um “norte americanismo”, os quais impossibilitam uma maior autonomia cultural ao país. Mesmo o futebol e o carnaval, citados inclusive por Carvalho como formas de aproximação entre o povo e a classe média, já sentem os efeitos desse “capitalismo à brasileira”. “Não tirem os negros do nosso futebol”, dizia João Saldanha. Tiraram. A sociedade que antes proporcionava, embora de forma artificial, o convívio mínimo entre as classes está em conflito. A fragmentação e a polarização atuais, como Jessé de Souza apresenta, colocam novamente em cartaz uma tentativa de expurgo das classes pobres, às vezes sob o pretexto de se tratar de classes perigosas, da mesma forma que no século XIX.

A mídia, o empresariado e os coronéis, sabidamente os mesmo desde sempre, invocam um discurso de limpeza para camuflar a tentativa de retomada de um poder de influência, possivelmente perdido nos últimos anos. A mídia tem papel fundamental na formação do pensamento distorcido acerca da realidade presente brasileira. Não é à toa que jornais como El Pais, The Guardian, NY Times, BBC, Al Jazeera, La Nacion, Le Monde, Il Fatto Quotidiano, e outros, mostram os perigos do que está sendo feito a respeito da frágil democracia brasileira, mas que não têm esse discurso ouvido pela massa do país já internalizada na ideologia transmitida pelos nossos meios de comunicação tradicionais. Isso faz sentido se pensarmos que as teorias de manipulação tão conhecidas não encontram eco numa sociedade que apresenta pouco interesse pelo Humanismo, pela reflexão e pela busca das soluções efetivas, ao contrário, tenta empurrar para debaixo do tapete os problemas sociais.

Não é a toa que, historicamente, e diante de tudo isso, as camadas populares não participam de fato do processo político por considerarem esse universo tão distante dos seus anseios proporcionando, assim, o arcabouço para um cenário perigoso ao regime democrático: o distanciamento das classes mais baixas das decisões políticas nacionais, o que nos leva a crer na difusão de uma espécie de estado paralelo onde as leis são próprias e não estão sujeitas às decisões soberanas.

Fica então a proposta, a fim de ampliarmos a discussão e o campo de ação do pensamento acerca dessa construção nacional, para que, talvez utopicamente, encontremos um modelo de desenvolvimento de fato, pois apoiado na efetiva inclusão das diversas classes e raças que compõem o tabuleiro cultural brasileiro.

Desta forma, e finalmente, que esse debate se estenda a fim de salvaguardar nossa cultura: música, dança, literatura, futebol, e mesmo a política, dessa padronização e elitização impostas por uma camada que busca incansavelmente jogar nos porões, consciente ou inconscientemente, a nossa própria história e bagagem cultural.

Notas:

- No encerramento deste texto a BBC publicou um estudo com este título: “Branco, superior completo e sob investigação: a cara do Senado que votará impeachment”, o que demonstra o caráter classista do processo histórico. (ver link abaixo)

- Esse trabalho foi produzido antes da confirmação do Impeachment. Estamos vivendo essa História, portanto, alguns acontecimentos se renovam e se atualizam a cada dia. Mesmo assim, a cada releitura, percebe-se a reafirmação das teses aqui apresentadas.

anexo I
(Edição de fevereiro de 1893)

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anexo II
(Edição de 12 de março de 2016)

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anexo III
(Edição de 4 de maio de 2016)

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anexo IV
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anexo V
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notas de rodapé

 
[1] Na indústria televisiva, três famílias têm maior peso: a família Marinho (dona da Rede Globo, que tem 38,7% do mercado), o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus Edir Macedo (maior acionista da Rede Record, que detém 16,2% do mercado) e Silvio Santos (dono do SBT, 13,4% do mercado). A família Marinho também é proprietária de emissoras de rádio, jornais e revistas – campo em que concorre com Roberto Civita, que controla o Grupo Abril (ambos detêm cerca de 60% do mercado editorial). Famílias também controlam os principais jornais brasileiros – como os Frias, donos da Folha de São Paulo, e os Mesquita, de O Estado de S. Paulo (ambos entre os cinco maiores jornais do país). No Rio Grande do Sul, a família Sirotsky é dona do grupo RBS, que controla o jornal Zero Hora, além de TVs, rádios e outros diários regionais.Famílias ligadas a políticos tradicionais estão no comando de grupos de mídia em diferentes regiões, como os Magalhães, na Bahia, os Sarney, no Maranhão, e os Collor de Mello, em Alagoas. (Fonte BBC Brasil)

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